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Economia compartilhada e o mito da retórica Uber: parte 3/3

Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor

Vimos até agora a estratégia de penetração no mercado de Uber, Lyft, 99 e suas similares, chamadas de Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs) em legislação da cidade de São Paulo. 

Na parte I nos aprofundamos em suas estratégias retóricas e como utilizam disso para surfar na ausência de marco regulatório. Na parte II chegamos as consequências negativas do modelo de negócios de carros compartilhados por app e os avanços que cidades fizeram na governança urbana. 

Agora, na parte III, abordaremos os desafios que se impõem ao modelo da Uber, as concorrências que despertam e finalizamos com o papel do transporte público nessa questão. 

Veja também: 

O futuro com carros sem motorista

Não é irreal dizer agora em 2020 que carros autônomos, destes que se dirigem sozinhos, estarão disponíveis à compra em pouco tempo. Carros semi-autônomos da fabricante americana Tesla já estão no mercado há anos e os principais impedimentos hoje são marcos regulatórios e opinião pública negativa. 

Isso interfere diretamente nos planos da Uber e semelhantes de diminuir seus custos operacionais com motoristas, antes que novas resoluções sejam passadas mundo afora as obrigando a arcar com encargos trabalhistas. Talvez não haja tempo o bastante. 

Enquanto não há tempo para algumas, outras nadam nesse novo mar. É o caso própria Tesla, que recentemente anunciou que colocará milhares de carros autônomos na rua ainda este ano. A empresa tem utilizado visão computacional e sensores há anos em seus carros elétricos e agora promete uma solução de direção autônoma onde basta apenas uma atualização para que modelos não-autônomos recebam a novidade. 

O plano da empresa é mais ousado do que o de qualquer outra, pois a Tesla já possui sensores em carros comuns na rua, diferentemente de competidoras que têm apenas uma centena de testes rodando, como a Uber e a Waymo. 

A quantidade de informações em bancos de dados é diretamente ligada à qualidade de qualquer Inteligência Artificial, necessária para os carros autônomos. 

Além disso, os clientes da Tesla já estão acostumados com um carro que é aberto por aplicativo e totalmente digital, contribuindo para a adoção inicial e diminuição da barreira negativa. 

Outro ponto importante nos carros autônomos da Tesla é que eles apostam em serviços, onde não possuímos o carro e só o solicitamos. E nesse momento podemos ainda escolher dirigir e só acionar o modo autônomo se estivermos confortáveis. Ou seja, a barreira de entrada causada pela percepção negativa das pessoas em um carro que se dirige sozinho é menor, pois elas estão aptas a dirigir. 

O carro só anda sem motorista quando quisermos ou entre um chamado e outro, conseguindo o que a Uber e afins mais querem mas ainda estão muito longe de alcançar: não ter motoristas para pagar. 

Nesse cenário, a Tesla se torna uma grande concorrente à Uber, fazendo frente aos seus serviços e tornando ainda mais inviável o modelo de negócios atual dos carros compartilhados por app. 

Imagine que você poderá comprar um carro autônomo – cerca de $38 mil dólares na versão básica – e usá-lo como robotáxi nas horas vagas, fazendo cerca de $30 mil dólares ao ano. Em pouco mais de 12 meses o investimento inicial se paga. 

É claro que essas são previsões otimistas. No Brasil, em particular, ainda não temos estrutura para carros elétricos, o que atrasará a adoção desses modelos. Além disso, um carro que se paga “sozinho” logo seria bom demais pra ser verdade, enchendo nossas cidades desses veículos e diminuindo drasticamente o preço das viagens, tornando mais difícil lucrar assim. 

Outro fator é que não existe qualquer marco regulatório para carros autônomos no Brasil, embora a experiência com o “problema Uber”tenha tornada mais dinâmica a estrutura de gestão das cidades e do uso viário. 

Ter comitês e protocolos voltados à inovação impede experimentos catastróficos, como a morte de uma pedestre em testes do carro autônomo da Uber no Arizona (EUA), mas não limita a inovação, uma vez que possui estrutura para ao menos avaliar novas soluções. É o caso do Conselho Municipal de Uso Viário (CMVU) na capital paulista. 

De toda forma, modelos de carros compartilhados por app correm sério risco no curto prazo. Já não lucram, pagam mal seus motoristas e têm pela frente que lidar com a voracidade de uma empresa muito à frente, como a Tesla. 

Para onde a economia compartilhada pode seguir…

Ao longo dos três textos dessa série especial sobre o modelo de negócios da Uber e suas similares falamos algumas vezes sobre economia compartilhada e como essas empresas se apropriaram do termo para dar vazão à necessidade de se diferenciar. 

Entretanto, economia compartilhada não é algo que nasceu ontem. Mesmo o transporte público pode ser considerado uma forma de economia do compartilhamento, uma vez que todos os usuários dividem os custos do sistema. Ainda por cima, motoristas e profissionais sempre tiveram todos os seus benefícios e direitos cobertos pelas leis vigentes. 

O que está em desuso é um serviço que não atende às necessidades específicas de cada indivíduo, algo que o transporte coletivo urbano não consegue pois é um dos setores mais regulados do país e que está à beira da falência por regulações ruins – além da falta delas em outros setores. 

A transformação digital de qualquer indústria é complexa. Já a transformação digital de um dos setores mais tradicionais do país, o de transportes, apresenta desafios maiores ainda, levando em consideração legislação, tecnologia, o estigma de corrupção, etc. 

Nesse caso, não precisamos de menos regulação, mas de normas melhores, que incentivem a inovação e regulam setores que causam externalidades negativas, como é o caso das empresas de tecnologia no setor de transportes.

Nesse mundo ideal, não precisaremos nos preocupar novamente com soluções que se dizem mágicas, pois o transporte público já será altamente eficiente. 

No caso da Uber e suas similares, previsões de mercado enxergam um caminho turbulento à frente. Para continuar burlando legislações que as obriguem a pagar dignamente seus motoristas, especialistas preveem uma virada ao segmento de franquias, onde franqueados podem usar a tecnologia de conexão entre motorista-passageiro. 

Nesse caso, a Uber não teria mais relação com o motorista, somente com o cliente final e o dono da franquia e chefe dos motoristas. Entretanto, esse modelo não exime totalmente a empresa de tecnologia de seus deveres e, em determinadas visões, pode colocá-la como co-responsável pelos trabalhadores. 

Um exemplo disso é o setor da moda, um dos setores mais lucrativos do mundo, que utiliza mão de obra terceirizada em suas costuras, se dando o direito assim de ignorar violações de direitos trabalhistas. Quando expostas nessas situações, grandes marcas apenas rompem contratos e fazem notas de repúdio, ignorando que na verdade estavam terceirizando trabalho escravo num problema estrutural. 

O ponto aqui é que o mundo está mais esperto para manobras como essas. 

A década da virada

Todo especialista em mobilidade urbana está falando como a década de 2020 será importante para o setor. Inovações introduzidas – com permissão ou não – na última década estão alcançando amadurecimento. 

Novas soluções estão a caminho e marcos regulatórios são promulgados cada vez mais rápido. Embora ainda excessivamente focadas em “regulação”, cidades estão mais cientes da mega estrutura do espaço urbano e da necessidade de operar diversos fatores para continuar melhorando a vida urbana e não entregar a vida em cidade às empresas de tecnologia. 

Estas últimas, por sua vez, estão cada vez mais em descrédito e desconfiança no Ocidente, nos mais diferentes setores, sobretudo pela falta de transparência em suas mega operações de dados. 

Dessa forma, será cada vez mais difícil usar a tática “peça perdão, mas não peça permissão”. O que é bom para a sociedade. Só precisamos ter mais clareza de que regulações servem também para estimular a inovação, e não só atrasá-la. 

A inovação, por sua vez, precisa estar atenta às demandas da sociedade, e não ser construída a 4 paredes pela elite tecnológica. Afinal, de boas intenções o cemitério de patinetes está cheio.

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Economia compartilhada e o mito da retórica Uber: parte ⅔

Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor

Após a chegada da Uber e do êxtase que tomou conta do mercado atingimos um período de amadurecimento onde as consequências desse modelo geram mudanças significativas na sociedade. Podemos agora articular conhecimento teórico sobre esse assunto. 

As Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs), como Uber, 99/Didi e Lyft, foram pioneiras numa relação de trabalho pautada por demanda, à princípio com a retórica de “nossos motoristas podem fazer o que quiser no tempo livre e trabalhar quando, onde e como quiserem”

Porém, o que podemos comprovar é que a grande maioria dos motoristas disponíveis nessas plataformas têm nelas seu único meio de subsistência. 

Veja também: 

Trabalho ou empreendedorismo? 

Um estudo da Universidade de Berkeley, na Califórnia, aponta que em Seattle 55% dos motoristas de aplicativos de carros compartilhados trabalham em período integral e 83% compraram seu carro com o intuito de trabalhar no segmento. 

No Brasil, em especial, a uberização” do trabalho, definida por longas jornadas, baixos pagamentos, inexistência de benefícios e algoritmos obscuros, foi intensa, uma vez que a taxa de desemprego está acima dos 10% desde 2016. 

Esse alto índice de desocupação contribui todos os dias para a catalização de milhares de pessoas que viram na condução de veículos uma oportunidade de renda em meio à crise e persistência do desemprego. 

Esse movimento vai contra toda a retórica inicial da OTTCs de “liberdade”para seus motoristas, pois eles são cada vez mais funcionários em tempo integral à serviço da empresa. Algumas perguntas chave para entender essa questão podem ser: 

  1. O trabalhador é livre para desempenhar sua função sem o controle ou a direção da companhia? 
  2. As tarefas desempenhadas pelo trabalhador estão fora do principal negócio da empresa?
  3. O trabalhador está ligado a uma empresa ou atividade da mesma natureza da tarefa desempenhada?

Com algoritmos comandando toda a dinâmica de trabalho e o negócio principal das OTTCs ser mobilidade, embora tentem negar, fica evidente que existe um vínculo entre motoristas e empresas.

Segundo o site Vagas.com a renda média mensal de um Uber é R$1800, mas nada consta sobre a jornada de trabalho, que pode ultrapassar em muito as 40 horas semanais num emprego formal CLT. 

Sem contar os custos de manutenção do carro, seguros e as viagens não remuneradas entre clientes ou na ida e volta pra casa. Sabe quando você pede ao motorista para andar mais um quarteirão? O algoritmo não é transparente a ponto de dizer que isso não é cobrado. Agora imagina isso acontecendo várias vezes ao mês, o prejuízo ao motorista se torna significativo. 

Dados como esses apontam para uma crescente precarização do trabalho. Bem distante das promessas iniciais. Mas a dissociação de discurso e realidade não é um erro, é uma estratégia. 

Para captar bilhões em investimentos e atrair tanta atenção da mídia foi necessário criar uma retórica de “inovação” e “disrupção”quando claramente essas empresas estavam infringindo legislações e mantendo milhares de motoristas como informais, mesmo que muitos tenham todas as características para serem considerados funcionários.

A resistência em considerar como funcionários se dá pela elevação dos custos com a contração formal. Se hoje a Uber registra prejuízos todos os anos, em um cenário onde paga adequadamente seus motoristas a falência é evidente, pois só em 2019 a conta fechou no vermelho por $8.5 bilhões de dólares.

Ao abrir capital na bolsa de Nova Iorque, a companhia afirmou num extenso relatório que geraria lucro dentro de alguns anos, muito em relação à expectativa de uso de carros autônomos e redução de custos com seus motoristas. 

Ou seja, mesmo já pagando pouquíssimo aos motoristas, esse modelo de negócios ainda depende de uma potencial, mas não certa, possibilidade de carros autônomos dominarem nossas ruas. 

Embora já existam diversas iniciativas em fases avançadas, ainda não sabemos como irão se comportar nas ruas das cidades – e se serão bem aceitas por poder público e sociedade – o que pode retardar ou evitar sua adoção e prejudicar os planos da Uber. 

A empresa, inclusive, é responsável pela morte de uma pedestre em testes com seu próprio software de Inteligência Artificial para carros autônomos. 

Por fim, recentemente o estado americano da Califórnia reconheceu, por meio da Justiça, vínculo empregatício entre Uber, Lyft e seus motoristas. Ambas as companhias ameaçam agora sair do estado, mesmo este sendo um dos mais populosos e importantes de todo o mundo. 

Questões como essas demonstram o desafio que o modelo de negócios das empresas OTTCs possuem e que tendem a ficar mais nítidos, a partir do momento em que o modelo de negócios está baseado na exploração de trabalhadores subutilizados. 

E ainda nem falamos dos impactos na vida urbana… 

Mais trânsito nas cidades

Se as OTTCs surgiram confiantes de que as pessoas teriam menos necessidade e vontade de ter um carro, colaborando assim para menos trânsito nas cidades, o que se comprova hoje é o exato oposto. 

Aplicativos de carro compartilhado pioram o trânsito nas cidades, como revelam inúmeras pesquisas nacionais e internacionais. Alguns fatores são apontados para isso: 

  • Muitos carros ficam rodando vazios até encontrar passageiros;
  • Há um número expressivo de motoristas disponíveis nessas plataformas hoje; 
  • Viagens de carro sob demanda se popularizaram entre classes mais baixas, em situações em que o transporte público era usado antes;
  • Incentivos ao uso do carro próprio continuam em toda a sociedade. 

As próprias companhias já admitem o cenário, depois de tantas pesquisas que confirmam o cenário. Estudo encomendado por Uber e Lyft nos Estados Unidos chegou a número impressionantes: em São Francisco, por exemplo, viagens de carro por app já são 13,4% do congestionamento. E metade do tempo os carros estão vazios entre uma viagem e outra. 

Os avanços 

Se podemos concluir com algo positivo em relação ao que vimos no capítulo I e II deste tema é o avanço na governança urbana no lugar da regulação dos transportes. 

Novos modais e serviços são entendidos numa estrutura mais ampla no espaço finito que é o viário, num amadurecimento de uma discussão que inicialmente estava numa dicotomia entre regulação ou não. 

À exemplo do que aconteceu em São Paulo, cidades estão mais preparadas para pensar a multimodalidade e os aspectos negativos que diferentes modais podem causar no espaço urbano. 

Com políticas pública em governança urbana ao invés de apenas regulação pode-se não só diminuir prejuízos às cidades como também otimizar a mobilidade ativa, os meios públicos e a integração harmônica e vantajosa da mobilidade urbana, do espaço urbano e da vida em cidades. 

Entretanto, apenas um passo foi dado, enquanto os avanços tecnológicos seguem em curso e impõem novos desafios à vida urbana. É o que abordaremos na parte III desta série de artigos. 

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Nota de R$200 mostra barreiras dos pagamentos digitais e impõe desafios ao transporte público

Serviços essenciais, como transporte público, são vias que favorecem a digitalização financeira, mas concentração das estratégias ainda está nas classes que já não usam tanto o dinheiro em espécie

Você verá neste artigo 

  • Os motivos do lançamento na nova cédula de R$200
  • Possíveis impactos da nova cédula, em especial no transporte público
  • A desigualdade no acesso aos meios digitais no Brasil
  • Como a China promoveu a digitalização financeira da sua população
  • O que temos a aprender com o gigante Asiático 
  • Como o transporte público é uma peça chave na transformação digital do país
  • Oportunidades com o lançamento do PIX pelo Banco Central 

O dinheiro em espécie em posse dos brasileiros está aumentando durante a pandemia, o que levou o Banco Central a anunciar a nova nota de R$200, uma estratégia para diminuir custos com a circulação maior de cédulas. 

Segundo a instituição, está ocorrendo um entesouramento do dinheiro, e os principais motivos são a insegurança nos bancos em setores da sociedade – o medo da inflação e a lembrança do confisco da poupança incentiva a retirada dos bancos; a menor circulação do dinheiro no comércio e os saques do auxílio emergencial, que em sua maioria não voltaram ao sistema bancário. 

O movimento vai na contramão do que estava acontecendo até então: a diminuição de pagamentos feitos por dinheiro em espécie. Mas, ao mesmo tempo, o anúncio dá luz a um problema pouco abordado nas rodinhas de tecnologia e inovação mais esclarecidas: o acesso da população mais pobre aos pagamentos digitais, além dos problemas decorrentes do estímulo ao uso do dinheiro em espécie. 

Primeiros impactos na economia

Especialistas em economia e investimentos ouvidos pelo Estadão divergem em relação aos impactos diretos na economia brasileira do lançamento de uma nova cédula. Parte afirma que a nova nota pode desencorajar ainda mais os investimentos, estimulando a poupança em casa mesmo. 

“A insegurança momentânea também faz com que algumas pessoas não invistam. Então, olhando para um todo, existe uma relação de que as pessoas guardam mais ‘dinheiro vivo’ em momento de crise e a nota alta vai aumentar essa prática”, afirma Caio Mastrodomenico, CEO da Vallus Capital.

Outra parte dos especialistas afirmam que o impacto nos investimentos não será tão sentido, pois esse setor é bastante digitalizado hoje. 

Porém, concordam que problemas já recorrentes tendem a se tornar mais claros, como é o caso do troco. Alguns setores já sofrem em suas transações com dinheiro, especial aqueles pouco digitalizados, como o transporte público. 

Luiz Renato, CEO da ONBOARD, especialista neste setor no país, conta ao Agora é Simples que “Práticas como a tentativa de embarque utilizando notas de R$ 50,00 e R$ 100,00 são conhecidas e chegam a garantir viagens gratuitas pela falta de troco. Imagina esse cenário com a nota de R$ 200,00”. 

Nessas situações, a nova nota pode contribuir para a já combalida economia das empresas de transporte, impondo novos desafios, treinamentos e estratégias. 

No ponto de estratégias, todavia, é importante nos aprofundarmos no contexto nacional e no papel atual exercido pelo transporte público em relação aos meios de pagamentos.

A desigualdade digital no Brasil

O último aspecto que corroborou com a decisão de incluir uma nova nota na moeda brasileira é a grande parcela das pessoas beneficiárias do auxílio emergencial que, em sua maioria, preferiram retirar a quantia da sua conta, ao invés de realizar seus pagamentos de forma digital. 

É óbvio que isso não pode ser explicado apenas em termos de preferência. Grande parte da população ainda não possui acesso aos meios digitais, ou se possui, não são impactados por uma educação financeira digital – nem ao menos qualquer educação financeira. 

Pesquisa do Instituto Data ANF, da Agência de Notícias da Favela, revela que 45% das pessoas pagam suas compras com dinheiro físico – número maior do que a média nacional de 29% – mesmo sendo notório que o risco de contaminação pelas notas seja maior, conforme afirmação da Organização Mundial da Saúde. 

Todo brasileiro já ouviu dos mais velhos quando criança que o dinheiro contém muitos germes. Não é diferente com o novo vírus. 

Com a pandemia, a aposta dos setores de pagamentos era de um aumento exponencial do digital, o que de fato ocorreu. O PicPay, uma das maiores carteiras digitais do país, ampliou em seis vezes novos cadastros mensais durante a quarentena. 

A Caixa Econômica Federal, a seu modo, lançou o app Caixa Tem para pagamentos do auxílio emergencial. Essa experiência, porém, foi frustrante para a grande maioria das pessoas, que não conseguia acessar o app, tampouco fazer pagamentos por ele. O app se tornou chacota na internet pela tentativa de mal sucedida de transformação digital. 

Nem mesmo “dando” dinheiro o app foi bem avaliado, uma vez que gerou filas, intermináveis mensagens de erro e críticas vindas de todo o Brasil.
Horário de funcionamento não faz sentido no digital

Sem um serviço funcional, a oportunidade de incluir financeira e digitalmente pela primeira vez grande parte da população mais vulnerabilizada do país não obteve grande sucesso, ocasionando a retirada dos valores de forma presencial em agências bancárias, o que contribuiu para a maior circulação de notas de papel e o lançamento da nova cédula de R$200. 

Sendo assim, as estratégias para incluir pessoas das classes C, D e E no setor digital, num dos países com a menor inclusão financeira do mundo, precisam contemplar a experiência de uso de milhões de brasileiros que estão pela primeira vez acessando seu dinheiro pelo celular. 

Transformação digital inclusiva 

A China é um exemplo de inserção tecnológica e um dos países que mais fazem transações pelo celular. Há pouco tempo, porém, grande parte da população pagava por suas compras em dinheiro vivo. O que fez mudar esse cenário? 

Um incentivo forte ao celular, utilizando uma tecnologia de baixíssimo custo, a dos QR Codes. Para as pessoas usarem um QR Code só é preciso um celular com câmera, item básico em qualquer aparelho hoje. Por parte dos lojistas, apenas uma impressão do código, que fica disponível aos consumidores. 

Código QR é um código de barras bidimensional que pode ser facilmente escaneado.

Desse modo, ocorre uma diminuição de custos grande com os PO’s (as maquininhas de cartão), e uma abrangência aos cidadãos. 

Muito diferente, por exemplo, do pagamento por NFC disponibilizado por empresas como Samsung e Apple, que são caros ao consumidor final e só estão disponíveis em equipamentos premium. 

Sobre isso, o artigo Why QR code payment develop well in Chinade Pu Zhang, da Universidade de Birmingham na Inglaterra, afirma que esses métodos são focados num público que já paga suas compras por meio do cartão de crédito ou débito, e que do ponto de vista do consumidor: 

“Os hábitos dos usuários precisam ser alterados para usar tecnologias como pagamento por código QR ou Apple pay em locais onde os cartões de crédito estão disponíveis, mas o aprimoramento da experiência do usuário é pequeno. Por outro lado, em lugares onde as pessoas não podem usar cartão de crédito, o uso do Apple Pay é quase impossível [por que não se não aceita cartão, dificilmente aceitará algo ainda mais moderno como NFC].”

Ou seja, traduzindo para o contexto brasileiro, com todo o cuidado que uma mudança geográfica dessa merece, podemos entender que existe hoje enfoque de pagamentos digitais para pessoas que já tem seus hábitos de pagamento bastante aprimorados por meio dos cartões. 

Por outro lado, as parcelas da população que ainda se relacionam com cédulas sujas cheias de Covid-19 estão afastadas dos pagamentos digitais, justamente essas que teriam uma experiência bastante diferente da atual, realmente disruptiva. 

Serviços públicos na popularização do online

Na China, a mudança que representou a popularização dos pagamentos por QR Code e da quase eliminação do dinheiro foi uma mudança cultural profunda no país asiático. A maior parte das pessoas não utilizava cartão, então os QR Codes foram sua primeira grande experiência com novos métodos de pagamento digitais

Algo muito próximo do Brasil, onde os pagamentos em espécie ainda são comuns na nossa rotina diária. 

Sendo assim, o grande benefício dos pagamentos digitais: maior segurança, facilidade, menores taxas, etc. é fundamental na qualidade de vida de um público que não está presente nas estratégias de penetração de mercado da maioria dos bancos, carteiras digitais e demais instituições financeiras. 

Pessoas que possuem um celular simples e ainda pagam em espécie terão sua experiência com o dinheiro radicalmente transformada, muito mais do que quem há anos já se relaciona com cartões de débito e crédito. 

Na China, para continuar com o exemplo, o Alipay se popularizou por aprimorar serviços públicos, incluindo o pagamento de multas de trânsito, transporte público, registros online em hospitais, etc. 

Ou seja, não é só sobre comprar coisas, mas também sobre ser mais eficiente e rápido em ações do dia dia. 

No Brasil, alguns aplicativos de carteira digital se atentarem a isso. Durante a pandemia, os pagamentos do Governo do Estado de São Paulo do auxílio merenda das famílias com alunos em escolas públicas foi feito por app. 

Foi uma excelente iniciativa para digitalização financeira da sociedade, pois representa para milhões de pessoas sua primeira conta digital e, outras tantas, a primeira conta. 

Em termos de mercado, também foi um passo importante para conquistar usuários. Os principais apps que se posicionam como carteiras digitais estão em corrida para ter a maior base de usuários possível quando for lançado o PIX do Banco Central. 

O novo sistema de pagamentos instantâneos tende a tornar obsoletos TED, DOC e os cartões bancários. Transações financeiras digitais seguirão um padrão único, e os esquemas fechados dominantes do mercado hoje serão menos atrativos. 

O PIX transforma o mercado pois descentraliza a cadeia de pagamentos, derruba as taxas e induz a competitividade. Tudo isso com o consumidor no foco do desenvolvimento.

O novo esquema é atrativo não somente para bancos e instituições financeiras. Todo setor com alto fluxo de pessoas e circulação de dinheiro pode desenvolver soluções próprias e surfar em novos modelos de negócios. 

Nesse ponto, juntamos os desafios que o transporte público enfrentará com a nova cédula de R$200, como abordado acima, com as oportunidades do PIX. 

Transportes públicos e digitalização financeira 

Cerca de 29% da população brasileira é desbancarizada e 59% destes são mulheres, algo em torno de 45 milhões de pessoas, segundo o Instituto Locomotiva. 

À exemplo da China, serviços essenciais a essa população são uma estratégia de alcance. É o caso do transporte público, que tem entre seus clientes mais de 50% mulheres de classes C, D e E, justamente as menos bancarizadas. 

O setor de transportes no Brasil ainda possui muita circulação de dinheiro, tem seus próprios esquemas de bilhetagem e base de clientes, com uma diversidade de pessoas enorme. 

O grande problema é que os sistemas fechados de bilhetagem só permitem o uso do saldo dos cartões no próprio transporte público, o que limita as possibilidades. O transporte público atinge parcelas enormes da população, mas da forma que se estrutura hoje não pode servir de meio para pagamentos de auxílios emergenciais, por exemplo. 

O Mapa de Insights é baseado em pesquisa quantitativa exploratória realizada em 2 cidades no sul e sudeste com 188 clientes do transporte público. No estudo buscava-se compreender as percepções dos usuários sobre os métodos de pagamento disponíveis para o transporte público: dinheiro e cartão. O Mapa foi organizado de forma a evidenciar as vantagens e desvantagens de cada um, e é possível notar que essas características se fundem: o que é vantagem em um, é desvantagem em outro. No círculo laranja, estão pontos que um pagamento digital poderia atender, seja na criação de valor positivo nas vantagens ou diminuição de barreira nas desvantagens.

Em meio à crise que abala o setor, um serviço de tamanha importância como esse poderia gerar as receitas necessárias para continuação dos serviços. O modelo de Account Based Ticketing (ABT), ainda não adotado no país, serve justamente para que o saldo de créditos do transporte fique armazenado em nuvem e não na mídia física, o cartão. 

Com a adoção ampla desse esquema poderíamos incluir financeira e digitalmente grande parte da população por meio de um serviço já usado, conhecido e carente de inovação. Esse serviço poderia ocorrer por meio de uma carteira digital dos transportes, ou mesmo um cartão que não fosse dos modelos MIFARE Classic (inseguros para qualquer fim). Infelizmente, desta vez, o transporte público perdeu o timing

Esse setor, tão acostumado com os ossos, poderia finalmente desfrutar de fatias do filé que é o setor de pagamentos no Brasil, mas ainda está numa paralisação em relação às possibilidades de inovação, mesmo tendo relacionamento e sendo responsável pela locomoção de trabalhadoras, estudantes e cidadãos no geral. 

Diferentemente da China, muitos serviços públicos, incluindo o transporte, ainda continuam presenciais e burocráticos. Basta nos atentarmos à dificuldade que é fazer um cartão de transporte, por exemplo. 

Há um longo caminho pela frente

O transporte público no Brasil tem um grande desafio com a nova cédula de R$200 para que ela não seja um problema nas operações do dia dia. 

Por outro lado, possui uma grande oportunidade com o lançamento do PIX, pois o novo sistema de pagamentos põe um novo jogo à mesa. 

Diversos entrantes se preparam para oferecer suas carteiras digitais, mas como vimos acima, a facilitação dos meios digitais não se resume só ao pagamento, mas também à captura de recursos, ao atendimento, solução de problemas e solicitações e demais serviços burocráticos, principalmente aqueles feitos pela grande maioria brasileira: transportes, justiça eleitoral, saúde, trabalho, etc. 

O lançamento da cédula de R$200 vai na contramão da digitalização financeira e também expõe o abismo social e digital no Brasil, que ainda torna mais fácil o manuseio do dinheiro do que o uso de canais digitais. 

Ou seja, andamos um passo com o PIX e os pagamentos de auxílios em carteiras digitais, mas damos dois passos para trás com sistemas que não funcionam e o lançamento de novas cédulas. 

Ironicamente, desta vez, o transporte público perdeu este ônibus. Nosso papel como difusora de conteúdo e conhecimento sempre será o de informar o mercado com nossas análises mais precisas.

Tudo isso para que na próxima volta, esse segmento em que tanto acreditamos seja a liderança. O que nós não podemos fazer, é segurar a viagem. 

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