Os obstáculos ao caminhar pelas ruas de cidades brasileiras e a campanha de mapeamento de calçadas
A foto acima mostra uma rua em um bairro considerado “nobre” em São Paulo, o Jardim Europa, mas a calçada não é nada chique. Mal dá para uma pessoa passar ali, ainda mais se estiver acompanhada ou empurrando um carrinho de bebê.
Cerca de 41% das calçadas em São Paulo não têm a largura mínima exigida por lei, de 1,90 m de largura. Nesse espaço, 1,20 m deve ser livre para a passagem e os outros 70 cm são considerados “faixas de serviço”, onde ficam postes, lixeiras etc.
Mais que um desafio, é uma triste aventura caminhar pelas calçadas de São Paulo (especialmente na periferia) e de outras cidades brasileiras: obstáculos, buracos, postes, irregularidades diversas, lixo e um espaço mínimo para o pedestre – quando ele existe.
É para garantir a melhoria das calçadas, nosso primeiro contato com o espaço público, que surgiu em 2014 a campanha #CalçadaCilada, da organização Corrida Amiga.
“De forma participativa, por meio do engajamento da população, estamos mapeando neste ano calçadas no entorno de hospitais e escolas, reforçando a urgência de termos boas vias para caminhar. Essa importância ficou ainda mais evidente por conta da pandemia e da necessidade de distanciamento físico. Estamos falando de futuro, mas buscando resolver os problemas do passado e do presente, com soluções já existentes e muito possíveis.”
– Silvia Stuchi, idealizadora da ONG Corrida Amiga.
“Em algum momento do dia, todos somos pedestres e acessaremos as calçadas”, lembra Silvia, destacando que a campanha hoje já conta com 440 respostas, vindas de pessoas de 60 cidades.
A qualidade das calçadas torna-se ainda mais urgente quando sabemos que a maior parte da população brasileira utiliza o transporte a pé e o transporte coletivo diariamente. Cerca de 40% dos brasileiros se deslocam exclusivamente a pé e 28% dos deslocamentos diários são feitos por modais coletivos, que sempre incluem um trecho a pé, representando 68% do total dos deslocamentos diários no país.
“Cerca de 130 milhões de pedestres se deslocam diariamente pelas ruas do Brasil, na maioria das vezes em calçadas irregulares, sem acessibilidade e/ou sem a sinalização adequada para o pedestre”
– ressalta Silvia.
Para participar da Campanha Calçada Cilada, mapeando problemas nas calçadas por onde anda, é só baixar gratuitamente o aplicativo @colabapp e localizar a Consulta Pública da Calçada Cilada 2020.
Espaços favoráveis à caminhada resgatam a competitividade dos sistemas de transporte público
Aqui no Agora é Simples falamos muito sobre tecnologias que facilitam a vida dos brasileiros que usam o transporte público. Acreditamos ser possível melhorar a qualidade dos serviços de transporte sem aumentos tarifários à população. E entendemos que existem medidas para termos uma mobilidade coletiva eficiente e sustentável que não são caras para os sistemas de transporte.
Entre as ações para engajar novos passageiros, que desde 1997 têm deixado o transporte público, o estímulo ao andar a pé tem um grande potencial. Como sabemos, o trânsito ocupa parte significativa da nossa vida, sendo assim, pensar em soluções que tirem a prioridade do transporte individual é o caminho para termos mais qualidade de vida em grandes cidades.
Mas como caminhar pode estimular o uso de ônibus, trens, metrôs e afins? Logo, nesse texto você encontrará:
Segurança para andar até as estações e pontos coletivos
Quando pensamos em melhorias do transporte público pouco é discutido sobre os caminhos até esses modais. A qualidade de trens, metrô, VLT’s, BRT’s e outros modais presentes no Brasil são sempre pontos de discussão. Porém, igualmente importante são as condições de acesso.
Estações e pontos de ônibus bem iluminados garantem mais segurança à população. Acessibilidade para pessoas com deficiência também: rampas de acesso e mapas táteis democratizam o transporte coletivo. Para estimular as andanças, caminhos planos, arborizados, tráfego de veículos calmo e fluxo constante de pessoas criam condições favoráveis ao uso do transporte público.
Pensando nas bicicletas, criar espaços que estimulem o uso das magrelas como integração com os modais passa por criar bicicletários, paraciclos (aquelas estações de ferro onde amarramos as bikes, geralmente ao ar livre) e sinalização correta.
As condições das calçadas no caminho das estações e até o destino final também colaboram
Falamos dos caminhos até as estações, e as calçadas, em particular, merecem um capítulo à parte. Vamos considerar que todos somos pedestres em algum momento, independente do uso de outros modais. Melhorias nas calçadas podem aumentar os 36% de pessoas que usam os pés como meio principal diariamente (ANTP, 2015).
Se a caminhada precisa ser compartilhada com meios de transporte passivos, como os ônibus ou metrô, calçadas de qualidade estimulam o andar na última milha. A última milha é a etapa final entre a descida do meio de transporte e a chegada ao destino. Como carros levam exatamente ao destino e evitam a última milha, garantir que o percurso final seja agradável é mais um recurso fundamental no estímulo ao desuso do automóvel.
O WRI, instituição que atua em países emergentes com o objetivo de melhorar a vida nas metrópoles, criou um documento com o objetivo de orientar gestores para a construção dessas calçadas. O caminho, é claro, perpassa muito debate. Além disso, também o envolvimento de diversos atores, uma vez que a responsabilidade das calçadas varia a cada cidade.
8 princípios da calçada, segundo o WRI
Dimensionamento adequado
Os tamanhos das vias devem priorizar a democratização do espaço público e garantir a circulação das pessoas sem interferência de serviços, mobiliário urbano, postes, etc.
Calçadas ideias devem ter faixas livres centrais, com no mínimo 1,20m de largura. Essa proporção que permite livre circulação, caminhadas, passeios com amigos e familiares. Também permite que cadeirantes deem meia volta ou ultrapassem outros cadeirantes. Mobiliário urbano, postes e equipamentos de edificações devem estar em faixas isoladas nos opostos da calçada.
Acessibilidade universal
Pensar em pessoas com deficiência, mulheres grávidas, pais com carrinhos de bebê e idosos reflete em calçadas com rebaixamento em locais de travessia.
Os pisos táteis são essenciais para orientar pessoas com algum tipo de deficiência visual sobre obstáculos no espaço. As calçadas também devem respeitar o princípio da inclinação longitudinal. Inclinações superiores a 5% prejudicam seriamente o deslocamento de qualquer pessoa com limitações de mobilidade.
Conexões seguras
Por conexão segura entendemos passagens que encurtam o caminho de pedestres em quarteirões longos, acima de 250m. Como exemplo becos, escadarias e galerias. Faixas de pedestre que supram o fluxo do local são importantes também.
As esquinas devem ser locais seguros, evitando mobiliário urbano nesses espaços, garantindo rebaixamento da via e ampla visibilidade entre pedestres e motoristas. Por fim, os pontos de ônibus e VLT devem ter integração com as calçadas. Para integrar, deve-se prever o fluxo alto em horários de pico e criar condições para evitar que a superlotação induza os passageiros a caminharem pela rua, prejudicando sua segurança.
Sinalização coerente
Há pouca informação de deslocamento com foco no pedestre. Um sistema informativo para pessoas a pé ajuda a diminuir caminhos errados e a explorar a cidade com mais segurança e fluidez.
Espaço atraente
Um espaço atraente é definido como o local de fácil deslocamento, possibilidade de permanência e interação social. Árvores têm o poder de criar sombras, diminuir zonas de calor e proteger pedestres. O mobiliário urbano como bancas, bancos e bebedouros maximizam o bem-estar no espaço público.
Segurança permanente
Esse quesito não diz respeito somente a profissionais de segurança. Os próprios cidadãos colaboram com espaços seguros ao transitarem. Mas como as vias têm diferentes fluxos a depender da hora e do dia, medidas devem ser tomadas para garantir segurança sempre.
A iluminação é fator crucial, assim como fachadas ativas. Essas fachadas incluem comércios e edificações permeáveis, iluminadas e com frequência de acesso em suas portas voltadas à rua.
Superfície qualificada
O tipo de material que calçadas são construídas impacta diretamente na qualidade do deslocamento. Dados do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital da Universidade de São Paulo mostram que até 18% dos incidentes em calçadas ocorrem pelas condições da superfície.
Drenagem eficiente
O último item está ligado ao anterior, pois a drenagem correta da água da chuva pode ser resolvida, em parte, com o material correto. Árvores na calçada e outros espaços verdes também colaboram para o escoamento da água. Garante-se, dessa forma, o fluxo de pessoas mesmo em dias muito chuvosos.
Exemplo de calçada espaçosa.
Caminhar a pé também estimula o pensamento crítico e uma boa relação com a cidade
Caminhar nos dá outra visão sobre a cidade, impossível se estamos em carros. Para Carolina Padilha, idealizadora do projeto Carona a Pé, “As pessoas precisam usar a cidade como um lugar de encontro, de vínculo, de laço. Acredito que estar com o outro é uma possibilidade de troca e de aprendizado. Acho que nossa maior habilidade é essa. Promover encontros e cuidar dessas relações para que elas sejam fortalecidas nesse caminhar.”
Carolina se instigou por alunos que que tinham a mesma rota que a sua. Decidiu agir e se juntou a alguns pais e crianças e assim começaram a compartilhar o caminho.
A ideia de Carolina, que se assemelha à outras iniciativas no mundo, busca tornar as caminhadas em momentos de interação humana e, de certa forma, aprendizado. As questões da cidade ficam mais claras quando temos tempo de observá-las e de fato vivê-las.
De forma geral, caminhar traz benefícios para a cidade e para os indivíduos. E se todas as questões acima, como qualidade e segurança das calçadas, estiverem bem aplicadas, só há mais motivos para andar e ter novas experiências.