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Economia compartilhada e o mito da retórica Uber: parte 3/3

Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor

Vimos até agora a estratégia de penetração no mercado de Uber, Lyft, 99 e suas similares, chamadas de Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs) em legislação da cidade de São Paulo. 

Na parte I nos aprofundamos em suas estratégias retóricas e como utilizam disso para surfar na ausência de marco regulatório. Na parte II chegamos as consequências negativas do modelo de negócios de carros compartilhados por app e os avanços que cidades fizeram na governança urbana. 

Agora, na parte III, abordaremos os desafios que se impõem ao modelo da Uber, as concorrências que despertam e finalizamos com o papel do transporte público nessa questão. 

Veja também: 

O futuro com carros sem motorista

Não é irreal dizer agora em 2020 que carros autônomos, destes que se dirigem sozinhos, estarão disponíveis à compra em pouco tempo. Carros semi-autônomos da fabricante americana Tesla já estão no mercado há anos e os principais impedimentos hoje são marcos regulatórios e opinião pública negativa. 

Isso interfere diretamente nos planos da Uber e semelhantes de diminuir seus custos operacionais com motoristas, antes que novas resoluções sejam passadas mundo afora as obrigando a arcar com encargos trabalhistas. Talvez não haja tempo o bastante. 

Enquanto não há tempo para algumas, outras nadam nesse novo mar. É o caso própria Tesla, que recentemente anunciou que colocará milhares de carros autônomos na rua ainda este ano. A empresa tem utilizado visão computacional e sensores há anos em seus carros elétricos e agora promete uma solução de direção autônoma onde basta apenas uma atualização para que modelos não-autônomos recebam a novidade. 

O plano da empresa é mais ousado do que o de qualquer outra, pois a Tesla já possui sensores em carros comuns na rua, diferentemente de competidoras que têm apenas uma centena de testes rodando, como a Uber e a Waymo. 

A quantidade de informações em bancos de dados é diretamente ligada à qualidade de qualquer Inteligência Artificial, necessária para os carros autônomos. 

Além disso, os clientes da Tesla já estão acostumados com um carro que é aberto por aplicativo e totalmente digital, contribuindo para a adoção inicial e diminuição da barreira negativa. 

Outro ponto importante nos carros autônomos da Tesla é que eles apostam em serviços, onde não possuímos o carro e só o solicitamos. E nesse momento podemos ainda escolher dirigir e só acionar o modo autônomo se estivermos confortáveis. Ou seja, a barreira de entrada causada pela percepção negativa das pessoas em um carro que se dirige sozinho é menor, pois elas estão aptas a dirigir. 

O carro só anda sem motorista quando quisermos ou entre um chamado e outro, conseguindo o que a Uber e afins mais querem mas ainda estão muito longe de alcançar: não ter motoristas para pagar. 

Nesse cenário, a Tesla se torna uma grande concorrente à Uber, fazendo frente aos seus serviços e tornando ainda mais inviável o modelo de negócios atual dos carros compartilhados por app. 

Imagine que você poderá comprar um carro autônomo – cerca de $38 mil dólares na versão básica – e usá-lo como robotáxi nas horas vagas, fazendo cerca de $30 mil dólares ao ano. Em pouco mais de 12 meses o investimento inicial se paga. 

É claro que essas são previsões otimistas. No Brasil, em particular, ainda não temos estrutura para carros elétricos, o que atrasará a adoção desses modelos. Além disso, um carro que se paga “sozinho” logo seria bom demais pra ser verdade, enchendo nossas cidades desses veículos e diminuindo drasticamente o preço das viagens, tornando mais difícil lucrar assim. 

Outro fator é que não existe qualquer marco regulatório para carros autônomos no Brasil, embora a experiência com o “problema Uber”tenha tornada mais dinâmica a estrutura de gestão das cidades e do uso viário. 

Ter comitês e protocolos voltados à inovação impede experimentos catastróficos, como a morte de uma pedestre em testes do carro autônomo da Uber no Arizona (EUA), mas não limita a inovação, uma vez que possui estrutura para ao menos avaliar novas soluções. É o caso do Conselho Municipal de Uso Viário (CMVU) na capital paulista. 

De toda forma, modelos de carros compartilhados por app correm sério risco no curto prazo. Já não lucram, pagam mal seus motoristas e têm pela frente que lidar com a voracidade de uma empresa muito à frente, como a Tesla. 

Para onde a economia compartilhada pode seguir…

Ao longo dos três textos dessa série especial sobre o modelo de negócios da Uber e suas similares falamos algumas vezes sobre economia compartilhada e como essas empresas se apropriaram do termo para dar vazão à necessidade de se diferenciar. 

Entretanto, economia compartilhada não é algo que nasceu ontem. Mesmo o transporte público pode ser considerado uma forma de economia do compartilhamento, uma vez que todos os usuários dividem os custos do sistema. Ainda por cima, motoristas e profissionais sempre tiveram todos os seus benefícios e direitos cobertos pelas leis vigentes. 

O que está em desuso é um serviço que não atende às necessidades específicas de cada indivíduo, algo que o transporte coletivo urbano não consegue pois é um dos setores mais regulados do país e que está à beira da falência por regulações ruins – além da falta delas em outros setores. 

A transformação digital de qualquer indústria é complexa. Já a transformação digital de um dos setores mais tradicionais do país, o de transportes, apresenta desafios maiores ainda, levando em consideração legislação, tecnologia, o estigma de corrupção, etc. 

Nesse caso, não precisamos de menos regulação, mas de normas melhores, que incentivem a inovação e regulam setores que causam externalidades negativas, como é o caso das empresas de tecnologia no setor de transportes.

Nesse mundo ideal, não precisaremos nos preocupar novamente com soluções que se dizem mágicas, pois o transporte público já será altamente eficiente. 

No caso da Uber e suas similares, previsões de mercado enxergam um caminho turbulento à frente. Para continuar burlando legislações que as obriguem a pagar dignamente seus motoristas, especialistas preveem uma virada ao segmento de franquias, onde franqueados podem usar a tecnologia de conexão entre motorista-passageiro. 

Nesse caso, a Uber não teria mais relação com o motorista, somente com o cliente final e o dono da franquia e chefe dos motoristas. Entretanto, esse modelo não exime totalmente a empresa de tecnologia de seus deveres e, em determinadas visões, pode colocá-la como co-responsável pelos trabalhadores. 

Um exemplo disso é o setor da moda, um dos setores mais lucrativos do mundo, que utiliza mão de obra terceirizada em suas costuras, se dando o direito assim de ignorar violações de direitos trabalhistas. Quando expostas nessas situações, grandes marcas apenas rompem contratos e fazem notas de repúdio, ignorando que na verdade estavam terceirizando trabalho escravo num problema estrutural. 

O ponto aqui é que o mundo está mais esperto para manobras como essas. 

A década da virada

Todo especialista em mobilidade urbana está falando como a década de 2020 será importante para o setor. Inovações introduzidas – com permissão ou não – na última década estão alcançando amadurecimento. 

Novas soluções estão a caminho e marcos regulatórios são promulgados cada vez mais rápido. Embora ainda excessivamente focadas em “regulação”, cidades estão mais cientes da mega estrutura do espaço urbano e da necessidade de operar diversos fatores para continuar melhorando a vida urbana e não entregar a vida em cidade às empresas de tecnologia. 

Estas últimas, por sua vez, estão cada vez mais em descrédito e desconfiança no Ocidente, nos mais diferentes setores, sobretudo pela falta de transparência em suas mega operações de dados. 

Dessa forma, será cada vez mais difícil usar a tática “peça perdão, mas não peça permissão”. O que é bom para a sociedade. Só precisamos ter mais clareza de que regulações servem também para estimular a inovação, e não só atrasá-la. 

A inovação, por sua vez, precisa estar atenta às demandas da sociedade, e não ser construída a 4 paredes pela elite tecnológica. Afinal, de boas intenções o cemitério de patinetes está cheio.

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Isso é obrigatório.
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Economia compartilhada e o mito da retórica Uber: parte ⅔

Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor

Após a chegada da Uber e do êxtase que tomou conta do mercado atingimos um período de amadurecimento onde as consequências desse modelo geram mudanças significativas na sociedade. Podemos agora articular conhecimento teórico sobre esse assunto. 

As Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs), como Uber, 99/Didi e Lyft, foram pioneiras numa relação de trabalho pautada por demanda, à princípio com a retórica de “nossos motoristas podem fazer o que quiser no tempo livre e trabalhar quando, onde e como quiserem”

Porém, o que podemos comprovar é que a grande maioria dos motoristas disponíveis nessas plataformas têm nelas seu único meio de subsistência. 

Veja também: 

Trabalho ou empreendedorismo? 

Um estudo da Universidade de Berkeley, na Califórnia, aponta que em Seattle 55% dos motoristas de aplicativos de carros compartilhados trabalham em período integral e 83% compraram seu carro com o intuito de trabalhar no segmento. 

No Brasil, em especial, a uberização” do trabalho, definida por longas jornadas, baixos pagamentos, inexistência de benefícios e algoritmos obscuros, foi intensa, uma vez que a taxa de desemprego está acima dos 10% desde 2016. 

Esse alto índice de desocupação contribui todos os dias para a catalização de milhares de pessoas que viram na condução de veículos uma oportunidade de renda em meio à crise e persistência do desemprego. 

Esse movimento vai contra toda a retórica inicial da OTTCs de “liberdade”para seus motoristas, pois eles são cada vez mais funcionários em tempo integral à serviço da empresa. Algumas perguntas chave para entender essa questão podem ser: 

  1. O trabalhador é livre para desempenhar sua função sem o controle ou a direção da companhia? 
  2. As tarefas desempenhadas pelo trabalhador estão fora do principal negócio da empresa?
  3. O trabalhador está ligado a uma empresa ou atividade da mesma natureza da tarefa desempenhada?

Com algoritmos comandando toda a dinâmica de trabalho e o negócio principal das OTTCs ser mobilidade, embora tentem negar, fica evidente que existe um vínculo entre motoristas e empresas.

Segundo o site Vagas.com a renda média mensal de um Uber é R$1800, mas nada consta sobre a jornada de trabalho, que pode ultrapassar em muito as 40 horas semanais num emprego formal CLT. 

Sem contar os custos de manutenção do carro, seguros e as viagens não remuneradas entre clientes ou na ida e volta pra casa. Sabe quando você pede ao motorista para andar mais um quarteirão? O algoritmo não é transparente a ponto de dizer que isso não é cobrado. Agora imagina isso acontecendo várias vezes ao mês, o prejuízo ao motorista se torna significativo. 

Dados como esses apontam para uma crescente precarização do trabalho. Bem distante das promessas iniciais. Mas a dissociação de discurso e realidade não é um erro, é uma estratégia. 

Para captar bilhões em investimentos e atrair tanta atenção da mídia foi necessário criar uma retórica de “inovação” e “disrupção”quando claramente essas empresas estavam infringindo legislações e mantendo milhares de motoristas como informais, mesmo que muitos tenham todas as características para serem considerados funcionários.

A resistência em considerar como funcionários se dá pela elevação dos custos com a contração formal. Se hoje a Uber registra prejuízos todos os anos, em um cenário onde paga adequadamente seus motoristas a falência é evidente, pois só em 2019 a conta fechou no vermelho por $8.5 bilhões de dólares.

Ao abrir capital na bolsa de Nova Iorque, a companhia afirmou num extenso relatório que geraria lucro dentro de alguns anos, muito em relação à expectativa de uso de carros autônomos e redução de custos com seus motoristas. 

Ou seja, mesmo já pagando pouquíssimo aos motoristas, esse modelo de negócios ainda depende de uma potencial, mas não certa, possibilidade de carros autônomos dominarem nossas ruas. 

Embora já existam diversas iniciativas em fases avançadas, ainda não sabemos como irão se comportar nas ruas das cidades – e se serão bem aceitas por poder público e sociedade – o que pode retardar ou evitar sua adoção e prejudicar os planos da Uber. 

A empresa, inclusive, é responsável pela morte de uma pedestre em testes com seu próprio software de Inteligência Artificial para carros autônomos. 

Por fim, recentemente o estado americano da Califórnia reconheceu, por meio da Justiça, vínculo empregatício entre Uber, Lyft e seus motoristas. Ambas as companhias ameaçam agora sair do estado, mesmo este sendo um dos mais populosos e importantes de todo o mundo. 

Questões como essas demonstram o desafio que o modelo de negócios das empresas OTTCs possuem e que tendem a ficar mais nítidos, a partir do momento em que o modelo de negócios está baseado na exploração de trabalhadores subutilizados. 

E ainda nem falamos dos impactos na vida urbana… 

Mais trânsito nas cidades

Se as OTTCs surgiram confiantes de que as pessoas teriam menos necessidade e vontade de ter um carro, colaborando assim para menos trânsito nas cidades, o que se comprova hoje é o exato oposto. 

Aplicativos de carro compartilhado pioram o trânsito nas cidades, como revelam inúmeras pesquisas nacionais e internacionais. Alguns fatores são apontados para isso: 

  • Muitos carros ficam rodando vazios até encontrar passageiros;
  • Há um número expressivo de motoristas disponíveis nessas plataformas hoje; 
  • Viagens de carro sob demanda se popularizaram entre classes mais baixas, em situações em que o transporte público era usado antes;
  • Incentivos ao uso do carro próprio continuam em toda a sociedade. 

As próprias companhias já admitem o cenário, depois de tantas pesquisas que confirmam o cenário. Estudo encomendado por Uber e Lyft nos Estados Unidos chegou a número impressionantes: em São Francisco, por exemplo, viagens de carro por app já são 13,4% do congestionamento. E metade do tempo os carros estão vazios entre uma viagem e outra. 

Os avanços 

Se podemos concluir com algo positivo em relação ao que vimos no capítulo I e II deste tema é o avanço na governança urbana no lugar da regulação dos transportes. 

Novos modais e serviços são entendidos numa estrutura mais ampla no espaço finito que é o viário, num amadurecimento de uma discussão que inicialmente estava numa dicotomia entre regulação ou não. 

À exemplo do que aconteceu em São Paulo, cidades estão mais preparadas para pensar a multimodalidade e os aspectos negativos que diferentes modais podem causar no espaço urbano. 

Com políticas pública em governança urbana ao invés de apenas regulação pode-se não só diminuir prejuízos às cidades como também otimizar a mobilidade ativa, os meios públicos e a integração harmônica e vantajosa da mobilidade urbana, do espaço urbano e da vida em cidades. 

Entretanto, apenas um passo foi dado, enquanto os avanços tecnológicos seguem em curso e impõem novos desafios à vida urbana. É o que abordaremos na parte III desta série de artigos. 

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Economia compartilhada e o mito da retórica Uber: parte ⅓

Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor

O ano de 2020 é decisivo para uma das companhias mais polêmicas da atualidade: a Uber, junto a suas similares em modelo de negócio, como Lyft, 99/Didi e Cabify.

O motivo? O fim do entusiasmo de mídia, investidores e sociedade com o que foi associado a “economia compartilhada”, e o início de uma era de questionamentos sobre um modelo de negócio que precarizou o trabalho, retirou passageiros do transporte público e aumentou o trânsito nas cidades

Este artigo compõe uma série de 3 textos que visam analisar a situação de mercado atual para essas empresas em aspectos mais amplos do que apenas a mobilidade urbana. 

Nesta edição analisamos a estratégia de penetração dessas empresas, também denominadas Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs) em legislação vigente em São Paulo, termo utilizado aqui como guarda-chuva das marcas citadas acima. 

No segundo texto objetivamos argumentar sobre as consequências desse modelo de negócio  na vida urbana. Por fim, no último artigo arriscamos uma previsão do destino que essas empresas poderão tomar na década que se inicia, vista por especialistas como um momento de amadurecimento de iniciativas dos anos 2010. 

A promessa “liberdade, economia e inovação” 

Desde seu lançamento em 2009 a Uber não se declara uma empresa de transportes, mas sim de tecnologia que conecta pessoas com carro e pessoas sem carro querendo fazer viagens. Dessa forma, tenta se contrapor aos taxistas, inimigos número 1 desde a estreia, ao enfatizar suas diferenças. 

Com essa retórica a Uber se vendeu – e continua se vendendo – como uma ferramenta de desintermediação, tão revolucionária que seus motoristas não poderiam se encaixar numa dinâmica de empregador-trabalhador convencional

Por esse argumento, conseguiu por muito tempo “imunidade”, enquanto ninguém conseguia enquadrar as OTTCs em nenhuma regulação. As OTTCs ficaram à margem de qualquer regulamentação e nadaram de braçada fazendo o que bem entendiam.

Somado a isso, essas empresas buscaram se posicionar como criadoras de empregos e de um novo modelo de trabalho onde as pessoas “são livres”para trabalhar quando puderem/quiserem, ficando disponíveis a conquistar seus sonhos e viver sua vida entre jornadas como motoristas. Embora, como veremos no próximo texto, não tenha sido exatamente assim na vida real. 

Com milhões de motoristas à disposição e nenhuma regulação séria nas mãos, Uber, 99, Lyft e outras puderam baratear viagens de carro como nunca, aumentando passageiros em todas as classes econômicas, incluindo aquelas que não costumavam usar táxis antes.

Para os mais ricos, apps de carros compartilhados são mais limpos, eficientes e rápidos do que táxis; para os mais pobres, podem representar uma viagem que não poderia ser feita por transporte público antes. 

Tudo isso levou aos dados absurdos que essas empresas possuem hoje: milhões de viagens por dia, milhões de passageiros e motoristas num ecossistema que lota nossas cidades de carros todos os dias. 

Além, é claro, da mudança drástica que provocou na vida de taxistas tradicionais e na perda de clientes do transporte público, que viu 25% de seus passageiros sumirem nos últimos 7 anos, muito em decorrência das facilidades e preços baixos de viagens por carro oferecidas pelos OTTCs.

Todo esse gigantismo em números fez os olhos de investidores de capital de risco brilharem, levando às OTTCs bilhões de dólares em investimento, com a promessa de lucro em questão de anos, à exemplo da Amazon, que perdeu dinheiro por muito tempo até começar uma curva de lucratividade exponencial. 

O problema é que talvez isso nunca aconteça com esse modelo de negócios em carros compartilhados. O fator humano, tão renegado por essas empresas, é a “pedra no sapato” para a viabilidade financeira. Vamos aos fatos. 

Os problemas “legislação, burocracia e mentiras” 

A Política Nacional para a Mobilidade Urbana, aprovada em 2012, foi um grande avanço da agenda pública de mobilidade no país e estabeleceu algumas categorias de transportes, incluindo o que popularmente chamamos de transporte público, táxis, fretados, etc. 

Os táxis foram categorizados em “transporte público individual” por seu perfil de serviço público: estão na rua, podem ser acessados por qualquer um que possa pagar e precisam de alvarás e outras exigências para operar. 

Quando desembarcou no Brasil em 2014, na cidade de São Paulo, o lobby da Uber logo se voltou a negar suas semelhanças com o termo “transporte público individual”, buscando um espaço nas fendas regulatórias. 

Um relatório de Zanatta, De Paula e Kira (2015) mostrou que, no Brasil, os taxistas alegavam que os motoristas da Uber ofereciam “transporte público individual” e, portanto, precisavam cumprir os procedimentos de licenciamento existentes e se enquadrar nas regulações aplicadas aos táxis em São Paulo. Por outro lado, representantes da Uber no Brasil alegaram que seu serviço pertencia a um novo tipo de transporte, “transporte motorizado privado” em vez de “transporte público individual”- citam e relatam Pedro C. B de Paula e Rafael A. F. Zanatta no artigo “O problema Uber em São Paulo: desafios à governança urbana experimental”.

O comportamento foi parecido em todos os outros países do mundo e necessário para fazer dar certo seu modelo de negócios. Com viagens a baixíssimo custo em relação ao que era oferecido até então, as empresas OTTCs só podem faturar se tiverem poucos encargos, o que exclui a possibilidade de ser “patroa” de seus motoristas ou arcar com os tributos que taxistas comuns possuem. 

A estratégia das OTTCs é a de pedir perdão e não permissão, aproveitando brechas em leis ou simplesmente as quebrando, como afirma o professor Ben Edelman no encontro “Desregulamentação, competição justa e Estado de Direito”da Harvard Business School. Para ele, empresas de tecnologia estão criando culturas de “ignorar a lei”, quando não gostam delas, partindo para uma estratégia “agressiva e ilegal”. 

Não pedir permissão deu certo à Uber. Em pouco tempo, a discussão binária do “é legal ou ilegal?”ou “é táxi ou não é táxi?”foi tomada por questões mais complexas, uma vez que houve um entendimento geral de que esse modelo de viagens veio para ficar. 

O início da regulação 

Durante 2014-2015 o debate público foi tomado pela questão da chamada “economia compartilhada” e das inovações que as tecnologias ofereciam à forma como serviços são prestados. 

Segundo Gansky (2010), citado no “Boletim de Inovação e Sustentabilidade” da PUC-SP, “economia compartilhada, ou mesh, é um sistema socioeconômico construído em torno do compartilhamento de recursos humanos e físicos, o qual inclui a criação, produção, distribuição, comércio e consumo compartilhado de bens e serviços por pessoas e organizações”.

Já Botsman e Rogers (2011) conceituam a economia compartilhada, ou consumo colaborativo, “como um conjunto de práticas comerciais que possibilitam o acesso a bens e serviços, sem que haja, necessariamente, a aquisição de um produto ou troca monetária entre as partes envolvidas. Estas práticas são constituídas por transações como o compartilhamento, empréstimo, aluguel, doação, trocas e escambo”.

O termo se tornou imperativo no discurso das OTTCs, que apareciam cada vez mais: 99táxis virou apenas 99 e se entregou ao modelo da Uber por pressão da nova concorrência, a espanhola Cabify chegou ao país e apps de nicho, como o Lady Driver, começaram a surgir. 

Diante da retórica afinada e do impacto em nossas cidades, a regulação desses meios se tornou determinante. Rio de Janeiro e São Paulo lideraram no país grupos de discussões e tomadas de decisão, com a segunda sendo referência em inovação e liderança. 

Na capital paulista a ideia de que transporte mediado por aplicativos é uma categoria diferente das dos táxis venceu, entretanto, as OTTCs receberam obrigações. Entre os tópicos estão a regularização dos veículos até a compra de créditos por quilômetro rodado, contrapartida pelo uso do sistema viário. 

Nesse modelo, as empresas compram créditos a serem usados por seus motoristas e o uso do crédito flutuaria a depender do horário da viagem, pontos de início e término ou tipo de carro utilizado. Houve uma preocupação em desincentivar a permanência no centro da cidade para atendimento também em regiões mais afastadas. 

Sobre o sistema de créditos, no artigo Pedro C. B de Paula e Rafael A. F. Zanatta comentam: 

“Em vez de um sistema puramente de comando e controle, a Prefeitura decidiu modificar o comportamento das empresas de tecnologia (“operadoras”) com incentivos de mercado. No modo em que foi projetado, o operador deve comprar créditos por quilômetros para permitir que os motoristas parceiros estejam na estrada. Se eles só permanecerem no centro da cidade durante os horários de pico, o crédito será usado mais rapidamente (o preço a ser no centro da cidade seria mais caro, por assim dizer). Se forem às periferias e aos arredores da cidade, o crédito durará mais (o preço seria menor).”

Foi uma grande inovação que São Paulo só estava preparada pela criação, anos antes, da SP Negócios e do Mobilab, laboratório de mobilidade urbana ligado à Secretaria de Transportes, responsável por formular políticas públicas e inovações tecnológicas. 

A experiência de pensar a dinâmica desse novo serviço na cidade também teve como resultado a criação do Comitê Municipal de Uso Viário (CMUV), órgão de governança urbana, preparado para trabalhar em questões que vão além da mobilidade urbana e da simples regulação. 

Entretanto, embora de início as principais questões tenham sido atendidas por meio desta regulação, a expansão dos serviços de Uber e afins foi colocando novos desafios às cidades, aos governos e às próprias empresas. 

Além disso, a experiência de regulação, atrelada à criação de comissões que analisam a mobilidade e o uso do espaço viário – em São Paulo a CMUV -, foi fundamental para o questionamento crítico com o amadurecimento dessas soluções. 

É o que podemos considerar o início do fim, ou a queda do êxtase causado pela chegada desses serviços, um momento onde a regulação não pode ser um entrave à inovação, mas também não pode ser feita a qualquer custo.

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