Economia compartilhada e o mito da retórica Uber: parte ⅓
Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor
O ano de 2020 é decisivo para uma das companhias mais polêmicas da atualidade: a Uber, junto a suas similares em modelo de negócio, como Lyft, 99/Didi e Cabify.
O motivo? O fim do entusiasmo de mídia, investidores e sociedade com o que foi associado a “economia compartilhada”, e o início de uma era de questionamentos sobre um modelo de negócio que precarizou o trabalho, retirou passageiros do transporte público e aumentou o trânsito nas cidades.
Este artigo compõe uma série de 3 textos que visam analisar a situação de mercado atual para essas empresas em aspectos mais amplos do que apenas a mobilidade urbana.
Nesta edição analisamos a estratégia de penetração dessas empresas, também denominadas Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs) em legislação vigente em São Paulo, termo utilizado aqui como guarda-chuva das marcas citadas acima.
No segundo texto objetivamos argumentar sobre as consequências desse modelo de negócio na vida urbana. Por fim, no último artigo arriscamos uma previsão do destino que essas empresas poderão tomar na década que se inicia, vista por especialistas como um momento de amadurecimento de iniciativas dos anos 2010.
A promessa “liberdade, economia e inovação”
Desde seu lançamento em 2009 a Uber não se declara uma empresa de transportes, mas sim de tecnologia que conecta pessoas com carro e pessoas sem carro querendo fazer viagens. Dessa forma, tenta se contrapor aos taxistas, inimigos número 1 desde a estreia, ao enfatizar suas diferenças.
Com essa retórica a Uber se vendeu – e continua se vendendo – como uma ferramenta de desintermediação, tão revolucionária que seus motoristas não poderiam se encaixar numa dinâmica de empregador-trabalhador convencional.
Por esse argumento, conseguiu por muito tempo “imunidade”, enquanto ninguém conseguia enquadrar as OTTCs em nenhuma regulação. As OTTCs ficaram à margem de qualquer regulamentação e nadaram de braçada fazendo o que bem entendiam.
Somado a isso, essas empresas buscaram se posicionar como criadoras de empregos e de um novo modelo de trabalho onde as pessoas “são livres”para trabalhar quando puderem/quiserem, ficando disponíveis a conquistar seus sonhos e viver sua vida entre jornadas como motoristas. Embora, como veremos no próximo texto, não tenha sido exatamente assim na vida real.
Com milhões de motoristas à disposição e nenhuma regulação séria nas mãos, Uber, 99, Lyft e outras puderam baratear viagens de carro como nunca, aumentando passageiros em todas as classes econômicas, incluindo aquelas que não costumavam usar táxis antes.
Para os mais ricos, apps de carros compartilhados são mais limpos, eficientes e rápidos do que táxis; para os mais pobres, podem representar uma viagem que não poderia ser feita por transporte público antes.
Tudo isso levou aos dados absurdos que essas empresas possuem hoje: milhões de viagens por dia, milhões de passageiros e motoristas num ecossistema que lota nossas cidades de carros todos os dias.
Além, é claro, da mudança drástica que provocou na vida de taxistas tradicionais e na perda de clientes do transporte público, que viu 25% de seus passageiros sumirem nos últimos 7 anos, muito em decorrência das facilidades e preços baixos de viagens por carro oferecidas pelos OTTCs.
Todo esse gigantismo em números fez os olhos de investidores de capital de risco brilharem, levando às OTTCs bilhões de dólares em investimento, com a promessa de lucro em questão de anos, à exemplo da Amazon, que perdeu dinheiro por muito tempo até começar uma curva de lucratividade exponencial.
O problema é que talvez isso nunca aconteça com esse modelo de negócios em carros compartilhados. O fator humano, tão renegado por essas empresas, é a “pedra no sapato” para a viabilidade financeira. Vamos aos fatos.
Os problemas “legislação, burocracia e mentiras”
A Política Nacional para a Mobilidade Urbana, aprovada em 2012, foi um grande avanço da agenda pública de mobilidade no país e estabeleceu algumas categorias de transportes, incluindo o que popularmente chamamos de transporte público, táxis, fretados, etc.
Os táxis foram categorizados em “transporte público individual” por seu perfil de serviço público: estão na rua, podem ser acessados por qualquer um que possa pagar e precisam de alvarás e outras exigências para operar.
Quando desembarcou no Brasil em 2014, na cidade de São Paulo, o lobby da Uber logo se voltou a negar suas semelhanças com o termo “transporte público individual”, buscando um espaço nas fendas regulatórias.
Um relatório de Zanatta, De Paula e Kira (2015) mostrou que, no Brasil, os taxistas alegavam que os motoristas da Uber ofereciam “transporte público individual” e, portanto, precisavam cumprir os procedimentos de licenciamento existentes e se enquadrar nas regulações aplicadas aos táxis em São Paulo. Por outro lado, representantes da Uber no Brasil alegaram que seu serviço pertencia a um novo tipo de transporte, “transporte motorizado privado” em vez de “transporte público individual”- citam e relatam Pedro C. B de Paula e Rafael A. F. Zanatta no artigo “O problema Uber em São Paulo: desafios à governança urbana experimental”.
O comportamento foi parecido em todos os outros países do mundo e necessário para fazer dar certo seu modelo de negócios. Com viagens a baixíssimo custo em relação ao que era oferecido até então, as empresas OTTCs só podem faturar se tiverem poucos encargos, o que exclui a possibilidade de ser “patroa” de seus motoristas ou arcar com os tributos que taxistas comuns possuem.
A estratégia das OTTCs é a de pedir perdão e não permissão, aproveitando brechas em leis ou simplesmente as quebrando, como afirma o professor Ben Edelman no encontro “Desregulamentação, competição justa e Estado de Direito”da Harvard Business School. Para ele, empresas de tecnologia estão criando culturas de “ignorar a lei”, quando não gostam delas, partindo para uma estratégia “agressiva e ilegal”.
Não pedir permissão deu certo à Uber. Em pouco tempo, a discussão binária do “é legal ou ilegal?”ou “é táxi ou não é táxi?”foi tomada por questões mais complexas, uma vez que houve um entendimento geral de que esse modelo de viagens veio para ficar.
O início da regulação
Durante 2014-2015 o debate público foi tomado pela questão da chamada “economia compartilhada” e das inovações que as tecnologias ofereciam à forma como serviços são prestados.
Segundo Gansky (2010), citado no “Boletim de Inovação e Sustentabilidade” da PUC-SP, “economia compartilhada, ou mesh, é um sistema socioeconômico construído em torno do compartilhamento de recursos humanos e físicos, o qual inclui a criação, produção, distribuição, comércio e consumo compartilhado de bens e serviços por pessoas e organizações”.
Já Botsman e Rogers (2011) conceituam a economia compartilhada, ou consumo colaborativo, “como um conjunto de práticas comerciais que possibilitam o acesso a bens e serviços, sem que haja, necessariamente, a aquisição de um produto ou troca monetária entre as partes envolvidas. Estas práticas são constituídas por transações como o compartilhamento, empréstimo, aluguel, doação, trocas e escambo”.
O termo se tornou imperativo no discurso das OTTCs, que apareciam cada vez mais: 99táxis virou apenas 99 e se entregou ao modelo da Uber por pressão da nova concorrência, a espanhola Cabify chegou ao país e apps de nicho, como o Lady Driver, começaram a surgir.
Diante da retórica afinada e do impacto em nossas cidades, a regulação desses meios se tornou determinante. Rio de Janeiro e São Paulo lideraram no país grupos de discussões e tomadas de decisão, com a segunda sendo referência em inovação e liderança.
Na capital paulista a ideia de que transporte mediado por aplicativos é uma categoria diferente das dos táxis venceu, entretanto, as OTTCs receberam obrigações. Entre os tópicos estão a regularização dos veículos até a compra de créditos por quilômetro rodado, contrapartida pelo uso do sistema viário.
Nesse modelo, as empresas compram créditos a serem usados por seus motoristas e o uso do crédito flutuaria a depender do horário da viagem, pontos de início e término ou tipo de carro utilizado. Houve uma preocupação em desincentivar a permanência no centro da cidade para atendimento também em regiões mais afastadas.
Sobre o sistema de créditos, no artigo Pedro C. B de Paula e Rafael A. F. Zanatta comentam:
“Em vez de um sistema puramente de comando e controle, a Prefeitura decidiu modificar o comportamento das empresas de tecnologia (“operadoras”) com incentivos de mercado. No modo em que foi projetado, o operador deve comprar créditos por quilômetros para permitir que os motoristas parceiros estejam na estrada. Se eles só permanecerem no centro da cidade durante os horários de pico, o crédito será usado mais rapidamente (o preço a ser no centro da cidade seria mais caro, por assim dizer). Se forem às periferias e aos arredores da cidade, o crédito durará mais (o preço seria menor).”
Foi uma grande inovação que São Paulo só estava preparada pela criação, anos antes, da SP Negócios e do Mobilab, laboratório de mobilidade urbana ligado à Secretaria de Transportes, responsável por formular políticas públicas e inovações tecnológicas.
A experiência de pensar a dinâmica desse novo serviço na cidade também teve como resultado a criação do Comitê Municipal de Uso Viário (CMUV), órgão de governança urbana, preparado para trabalhar em questões que vão além da mobilidade urbana e da simples regulação.
Entretanto, embora de início as principais questões tenham sido atendidas por meio desta regulação, a expansão dos serviços de Uber e afins foi colocando novos desafios às cidades, aos governos e às próprias empresas.
Além disso, a experiência de regulação, atrelada à criação de comissões que analisam a mobilidade e o uso do espaço viário – em São Paulo a CMUV -, foi fundamental para o questionamento crítico com o amadurecimento dessas soluções.
É o que podemos considerar o início do fim, ou a queda do êxtase causado pela chegada desses serviços, um momento onde a regulação não pode ser um entrave à inovação, mas também não pode ser feita a qualquer custo.
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