Quão perigoso é o transporte público durante a pandemia?
Boletim da Rede de Pesquisa Solidária mostra que os riscos de contágio são influenciados pela desigualdade social
Notícia publicada no Valor Econômico mostra que nos EUA houve uma corrida à compra de carros nos últimos meses, pois muita gente entendeu o transporte público como um foco de transmissão a ser evitado. Mas no Brasil comprar um carro para evitar aglomerações no transporte é a realidade de poucos, sem contar a inviabilidade no longo prazo de enchermos nossas cidades com mais veículos.
Boletim emergencial da Rede de Pesquisa Solidária, composta por pesquisadores de diversos órgãos, incluindo a Universidade de São Paulo, mostra que a desigualdade social do Brasil é um fator determinante no contágio por Covid-19 durante a pandemia.
Segundo os pesquisadores, que analisaram dados de São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, a diminuição da oferta de transporte durante a quarentena foi homogênea, e não levou em consideração que pessoas habitantes da periferia têm menos condições de praticar o home office do que trabalhadores mais próximos do centro, ou seja, diminuir a oferta sem se atentar às diferenças de deslocamento fez que com as viagens mais centrais de fato fossem mais seguras pelo baixa lotação, ao passo que as viagens da periferia para o centro continuaram cheias, se não até pior do que antes da pandemia.
O que tem sido feito para evitar contaminação no transporte público
É fato consumado que dada a alta circulação de pessoas, o mínimo que qualquer um de nós pode fazer é evitar tocar no rosto e lavar bem as mãos depois de encostar nos ferros de apoio de ônibus, trens e metrô. Empresas operadoras pelo país todo tem aumentando a higienização de seus veículos, entretanto no geral isso acontece nas paradas finais ou no fim do turno, o que delega aos usuários os cuidados pessoais.
Além disso, um trabalhador da periferia pode facilmente passar de 3 a 4 horas por dia no transporte público, o que muda drasticamente suas chances de contaminação em relação àqueles que fazem viagens mais curtas e ficam menos tempo.
Ainda segundo o boletim, assinado por Mariana Giannotti, Tainá Bittencourt e Pedro Logiodice, “A redução da oferta de empregos aliada à impossibilidade ou dificuldade de exercício virtual de ocupações manuais e informais, expõe os trabalhadores dos grupos mais vulneráveis a maiores riscos sociais e de saúde, com maior chance de contaminação pelo coronavírus em seus deslocamentos para o trabalho. Esse é o motivo básico que amplia ainda mais a desigualdade entre grupos sociais e raciais nas cidades.”
Nas cidades abordadas pelo estudo houve redução da oferta de transporte público durante a quarentena, com o objetivo de diminuir perdas econômicas para as empresas operadoras. Entretanto, a mudança foi irregular e atingiu de forma desproporcional estratos diferentes da sociedade.
“Considerando as diferentes regiões da cidade de São Paulo, por exemplo, as linhas da região central tiveram redução de 68% de passageiros, enquanto o número de ônibus circulando nessas linhas foram reduzidos em 61,3%. Já na região leste, a demanda reduziu 63,6% e a oferta de ônibus, 61,6%. Ou seja, a pequena folga criada pela redução da oferta de ônibus sendo menor do que a redução da demanda de passageiros é maior no centro do que na periferia. Como resultado, nas regiões mais afastadas, a lotação dos ônibus se mantém muito próxima dos já altos níveis observados antes da pandemia, o que contribui para a disseminação do vírus e aumenta as desigualdades entre as regiões e populações.”
O estudo conclui que “A redução da oferta de meios de transporte sem a simultânea redução da necessidade dos deslocamentos, ao invés de aumentar as taxas de isolamento social, acaba por aprofundar as desigualdades sociais e urbanas com o aumento do risco de contágio pelo coronavírus. “
Desigualdade social como fator de risco
Como podemos ver na simulação abaixo, em um cenário de 0% de isolamento social com a oferta de transporte público em 100% o risco de contaminação é muito alto em todas as regiões da cidade, com especial atenção à periferia. Com 45% de isolamento, média que se seguia durante a quarentena mais rígida em São Paulo e com a mesma frota em 100% há um risco muito maior de contaminação somente na periferia. No mesmo sentido, com os 70% de isolamento, número desejado pelos governos, ainda assim existiriam picos de alto risco na periferia. Sabendo que a oferta não está em 100% (último contato feito com a SPTrans indicou uma oferta de 65%) e que as taxas de isolamento só estão caindo, os riscos de contaminação são altos com acentuada periculosidade nas regiões extremas da cidade.
Para evitar esses riscos e garantir um transporte público seguro para todos os pesquisadores propõem que “em alguns trechos, principalmente nas regiões leste e sul da capital, a oferta de ônibus em circulação deve aumentar em relação à operação anterior à pandemia, de modo a garantir deslocamentos mais seguros em termos do risco de contaminação. No centro, a frota poderia ser reduzida a níveis mais baixos, porém deveria também atender aos aspectos de qualidade do serviço, com a garantia de uma frequência horária mínima.”
Na última semana o Agora é Simples abordou como é feito o planejamento da oferta do transporte público na capital paulista e na maioria dos sistemas de transporte do país. Sem análises precisas de dados estatísticos, a oferta não é preditiva, o que causa as aglomerações.
Em entrevista ao portal, Roberto Speicys, cofundador da startup Scipopulis, especializada em cidades inteligentes, alertou “Muitas linhas perderam mais do que isso, e algumas perderam muito menos que isso. Você não pode fazer um corte de frota uniforme em todas as linhas ou senão você tem o risco de gerar situações de lotação e de acúmulo de pessoas, que estão justamente o que a gente quer evitar ainda mais durante a pandemia.“
Se existe a possibilidade de investir em tecnologia para evitar as aglomerações, prevendo com mais qualidade a demanda por transporte levando em consideração os diferentes tipos de deslocamento, é esse o momento de aplicar, com riscos de perda a longo prazo da credibilidade do transporte público.
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