Viabilidade e inconsistências da gratuidade no transporte público: um estudo de caso em Paulínia/SP
O transporte público gratuito é sonho de muitos e viável para a maioria das cidades brasileiras, mas por que não é usualmente aplicável? Conheça o caso de Paulínia, interior de São Paulo
O transporte público gratuito está entre as soluções mais interessantes para cidades. A tarifa zero no transporte apresenta potencial para melhorar o trânsito, o bem-estar e a qualidade de vida não só de quem usa as redes, mas de toda a população, além do transporte ser mais eficiente, ecológico e econômico.
Hoje, o transporte coletivo no país se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, sendo que 89,8% vem de tarifas pagas pelos passageiros, 10,2% de incentivos públicos, enquanto as receitas não tarifárias (como publicidade) correspondem a R$ 375 mil, menos que 1% do valor total (Inesc, 2019).
Um estudo divulgado em outubro de 2019 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revelou que a oferta de transporte gratuito ou com tarifas reduzidas é viável na maior parte das cidades brasileiras. Isso se daria através de aumentos na arrecadação de impostos como IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e IPVA (Propriedade de Veículos Automotores), o que implicaria em parte da população pagar mais impostos, principalmente os que possuem maior renda e/ou que morasse em regiões valorizadas pela oferta de ônibus e metrô e/ou proprietários de automóveis.
Ainda assim, mesmo sem aplicação dos cenários propostos pelo estudo, a União destina recursos plurianuais para programas de mobilidade urbana que priorizam o transporte público em detrimento do privado. No entanto, em uma análise entre 2008 e 2019, apenas 27,2% dos recursos pagos pela União foram efetivamente gastos por estados e municípios. Ou seja, o dinheiro estava à disposição, porém não houve elaboração de planos suficientes para o uso.
Período do plano plurianual | Recurso pago pela União* (R$) | Percentual utilizado pelos municípios |
2008 – 2011 | 3.021.022.431,82 | 0,09% |
2012 – 2015 | 14.003.916.104,18 | 10% |
2016 – 2019 | 2.913.553.664,97 | 40% |
Hoje, no Brasil, 15 municípios já atuam com transporte gratuito, sendo que a maioria corresponde a cidades pequenas no interior que necessitam de poucos veículos para atender a população. No entanto, existem pontos que devem ser considerados para a aplicação do sistema no país e, para isso, vamos abordar neste artigo o caso da cidade de Paulínia/SP.
Tarifa zero no transporte em Paulínia/SP
Paulínia compreende quase 107 mil habitantes (IBGE, 2018) e apresenta um crescimento de 4,82% anual. A cidade foi a primeira a adotar a gratuidade no transporte público municipal através da Lei nº 1922 aprovada em 1995. A lei ainda isentava o pagamento do ISS (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) a empresa que efetuasse o transporte coletivo urbano na cidade.
No entanto, em 1997, a lei foi revogada e o sistema começou a funcionar em modo de concessão. Assim, a remuneração da Concessionária passou a ser proveniente da cobrança de tarifas pagas diretamente por usuários do transporte, possibilitando gratuidades apenas a estudantes, desempregados, deficientes físicos e idosos acima de 60 anos, além de 30% de desconto no Passe Comum Social.
Porém, em 1999, o município suspendeu a gratuidade para desempregados e o desconto do Passe Comum Social.
Seguindo para 2013, depois dos protestos que tomaram as ruas de todo o País no mês de junho, o prefeito Edson Moura Jr (PMDB) afirmou em sua cerimônia de diplomação que a tarifa de ônibus na cidade de Paulínia passaria a ser integralmente subsidiada pelo município novamente.
Na época, o valor da passagem de ônibus custava R$ 2,60, sendo que R$ 1,60 era subsidiado pela prefeitura e o valor repassado para a população era de apenas R$ 1, além de ser gratuito aos domingos e feriados e para pessoas com renda de até dois salários mínimos. Com a nova proposta, o valor estimado para custear o transporte seria de R$ 29 milhões ao ano.
“A cidade é muito rica, arrecada por mês R$ 80 milhões, não tem razão para não subsidiar integralmente a passagem“, disse a assessoria da administração da Prefeitura por meio de nota na época.
De acordo com levantamento da Associação Transparência Municipal de 2013, Paulínia se encontrava, pela primeira vez, entre os municípios bilionários do país, cidades cuja receita orçamentária ultrapassava 1 bilhão de reais em 2013. Segundo os dados, o município apresentava como Receita Orçamentária R$ 1.081.594.200.
No entanto, o projeto foi reprovado. As justificativas dos votos contrários se referiam à falta de um estudo de impacto no transporte público da cidade caso a tarifa fosse zerada, além do projeto não apresentar propostas caso a empresa tivesse que aumentar a frota em determinadas regiões.
Já em 2018, a gratuidade aos domingos e feriados foi suspensa, sendo cobrado R$1 como nos dias comuns. Segundo a prefeitura, a medida foi adotada para reduzir os prejuízos causados por atos de vandalismo no ônibus. “Os relatos [de vandalismo] foram feitos por um grande número de passageiros, cobradores, motoristas e da própria concessionária do serviço, que há anos enfrenta o problema”, informava a prefeitura em nota.
Essa mudança afetou consideravelmente a demanda de ônibus em domingos e feriados, o que fez com que a Prefeitura reduzisse a oferta. A decisão teve como base um levantamento da empresa Viação Passaredo, que apontou uma diminuição no número de usuários do serviço desde que a tarifa de R$ 1 passou a ser cobrada.
Em maio de 2019, o valor da tarifa teve reajuste de 22,81% que seria repassado aos usuários, mas por conta da determinação do prefeito Antonio Miguel Ferrari, o Loira, hoje, ex-prefeito, o município manteve a passagem a R$ 1. Caso ocorresse o aumento para os usuários, o reajuste seria de 65%, segundo nota da prefeitura.
Por fim, em dezembro de 2019, houve troca de empresa operadora de transporte público urbano e rural da cidade. O novo contrato com a Terra Auto Viação previa uma redução de custos na ordem de R$ 1,9 milhão nos cofres públicos. Atualmente, a concessionária opera com 52 coletivos no município, mantendo outros cinco em reserva, totalizando 57. Em média, 750 mil pessoas por mês utilizam o transporte público em Paulínia (Portal da Transparência de Paulínia/SP, 2018).
Inconsistências da gratuidade no transporte público urbano
Embora a solução da Tarifa zero seja passível de ser aplicada e contribua para uma maior aderência de clientes no transporte, é uma decisão que precisa ser tomada com cautela. O documento “Debates: Projeto Tarifa Zero”, produzido pelo PT de São Paulo em 1990, traz diversos relatos e questionamentos referentes ao programa, como a de Carlos Zarattini, hoje deputado federal:
“Abolir a cobrança é um caminho acertado? Outro assunto pouco discutido em nosso meio é a abolição da relação mercantil que se materializa na tarifa. Será esse um caminho que educa as massas ou as deseduca? […] parece equivocado afirmar que a educação e a saúde pública têm tarifa zero, não sofrem vandalismo. Qualquer um que conhece as escolas e hospitais percebe o alto grau de degradação e abandono. Não será isso uma forma de vandalismo dos próprios funcionários, abandonados pelos governantes?”
Zarattini traz pontos que não são abordados nos estudos de viabilidade da tarifa zero, mas que influenciam na análise econômica pós inserção do programa. Foi comprovado cientificamente que as pessoas não costumam valorizar o que é grátis. O caso de Paulínia é um bom exemplo, onde houve relatos de vandalismo no transporte nos dias de gratuidade.
Outro exemplo ocorreu na pequena cidade de Templin (cerca de 15 mil habitantes) na Alemanha. A gratuidade no transporte foi introduzida em 1997 e o que observou foi um aumento de passageiros de 1200% em 3 anos, sendo a maioria crianças e jovens, isso levou a um problema crescente de vandalismo (CATS et al., 2017).
A problemática na oferta do transporte público gratuito também envolve o uso exacerbado do serviço de modo a superar sua real função na sociedade. Embora existam fortes evidências de que seu uso está atrelado à classe social, uma vez que os ricos usam muito menos do que os pobres, estudos demonstram que oferecer um transporte gratuito é fornecer um serviço não somente aos usuários que mais precisam, mas a todos cidadãos, incluindo a população mais rica e o público motorizado/que possui automóveis.
Em um experimento realizado em Chapel Hill, na Carolina do Norte/EUA, com uma população por volta de 60 mil habitantes. A política de gratuidade no transporte público foi implementada em 2002 depois de realizar uma análise que mostrou que as receitas tarifárias (passageiros pagantes) eram relativamente baixas – cerca de 8% dos custos operacionais. Assim, após a implementação do transporte gratuito, o número de passageiros aumentou 43% durante o período de 9 meses (VOLINSKI, 2012).
O mesmo aconteceu em Copenhage, Dinamarca, onde pesquisadores forneciam um cartão de viagens grátis para proprietários de carros, revelou que, enquanto a promoção esteve vigente, houve um aumento significativo do deslocamento em transporte público, no entanto, a demanda caiu quando o plano expirou.
Assim, ao inserir a política de gratuidade ao transporte público, conclui-se que a demanda cresce consideravelmente em um curto espaço de tempo, o que, sem um planejamento correto, pode acarretar na queda da qualidade de serviço e superlotação, o que, neste momento, deve ser evitado.
Considerações finais
Embora este estudo de caso se baseie em uma variedade de fontes citadas e confiáveis, deve ser considerado como um primeiro passo em direção a um mapeamento e estudo abrangente de longo prazo de todos os casos de Tarifa Zero. Além da necessidade de analisar social e economicamente cada município brasileiro, entendendo suas próprias características e condições.
No entanto, pesquisadores da área apontam que para agir no modo de priorização do transporte urbano e desincentivo ao uso do carro, políticas relacionadas a taxas de congestionamento, estacionamento rotativo, preços de combustível e outros, podem resultar em uma mudança maior do que os ganhos pela redução das tarifas de transporte público.
Mesmo assim, deve-se considerar que subsídios ao transporte sejam aplicados de forma adequada, ou seja, promovendo maior qualidade e redistribuição, facilitando o acesso para a população que mais utiliza e necessita do transporte público, além de contribuir para uma mobilidade sustentável e não perder caráter atrativo e competitivo.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, C.H.R. Financiamento extratarifário da operação dos serviços de transporte público urbano no Brasil. Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), 2019.
CATS, O.; SUSILO, Y.O.; REIMAL, T. The prospects of fare-free public transport: evidence from Tallinn. Transportation, v. 44, n. 5, p. 1083-1104, 2017.
DIRETÓRIO MUNICIPAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES DE SÃO PAULO. Tribuna de Debates: Debate sobre o projeto Tarifa Zero. São Paulo: Diretório Municipal PT/SP, nov. 1990.
DOMINGUES, Letícia Birchal. Deliberação, conflito e movimentos sociais: um estudo de caso das práticas de organização e tomada de decisão do Tarifa Zero BH. Agenda Política, v. 6, n. 1, p. 130-157, 2018.
FIX, M.; RIBEIRO, G.E.; PRADO, A.D. Mobilidade urbana e direito à cidade: uma entrevista com Lúcio Gregori sobre transporte coletivo e Tarifa Zero. Rev. Bras. Estud. Urbanos Reg., v.17, n.3, p.175-191. Recife, 2015.
KĘBŁOWSKI, Wojciech. Why (not) abolish fares? Exploring the global geography of fare-free public transport. Transportation, p. 1-29, 2019.
Portal da Transparência de Paulínia/SP. Documento de Audiência Pública, 2018. Disponível em: <http://www.paulinia.sp.gov.br/downloads/transp/>. Acesso em: 07 de janeiro de 2021.
SCHIAFFINO, D.P.L; TOLEDO, J.I.F.; RIBEIRO, R.G. Tarifa Zero uma reflexão sobre a proposta. ANTP. 2015. Disponível em<http://files-server.antp.org.br/_5dotSystem/download/dcmDocument/2015/06/15/C088AE18-A9D3-4CCD-9A56-F54E04438370.pdf>. Acesso em: 11 de janeiro de 2021.
STORCHMANN, K. Externalities by automobiles and fare-free transit in Germany—A paradigm shift?. Journal of Public Transportation, v. 6, n. 4, p. 5, 2003.
VOLINSKI, J. Implementation and outcomes of fare-free transit systems. Transit Cooperative Research Program. TCRP Synthesis, p. 101, 2012.
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