O fim dos carros como meio principal de mobilidade está próximo
“Se tivesse perguntado às pessoas o que elas queriam, elas teriam dito cavalos mais rápidos” Henry Ford
As pessoas precisam se movimentar, isso é um fato. Desde os primórdios da história um dos destaques do que é ser “humano” é sua capacidade de se locomover para novos ambientes com o objetivo de sobrevivência. Essa necessidade continuou e, com a criação dos carros e sua maior disponibilidade no século XX, houve um um grande salto na mobilidade das pessoas, que tinham um jeito prático de fazer grandes trajetos.
O advento do automóvel no pós Revolução Industrial foi tão importante que impactou a forma como as cidades passaram a ser pensadas e construídas e, também, como nos movimentamos, com um processo intenso do estímulo à mobilidade motorizada em detrimento do andar a pé.
Os espaços urbanos começaram a ser projetados para os veículos, e não mais para os pedestres. As ruas e calçadas, que antes eram utilizadas para caminhadas a pé, perderam seu espaço a partir do aumento do tráfego de veículos, o qual começou a ser prioridade por atuar diretamente na construção de uma economia mais veloz, pautado na lógica da redução de tempo de circulação em decorrência da modernização do sistema de transportes (Santos, 2006).
Considerado fundamental para os fluxos de pessoas e mercadorias, o setor automobilístico ganhou forças por meio da sensação de velocidade e encurtamento de distâncias. Logo, os investimentos em infraestruturas rodoviária foram fomentados, de forma a se tornar um efeito multiplicador interno e do desenvolvimento econômico, com reflexos na geração de empregos e renda e no consumo.
Conjuntamente, aliado ao crescimento das cidades e as problemáticas resultantes do desenvolvimento urbano desorganizado, a mobilidade urbana vem sendo inviabilizada, visto que o ritmo de crescimento não foi acompanhado por infraestruturas e serviços capazes de suprir as necessidades. No Brasil, as primeiras iniciativas para controlar o desordenamento urbano foram o Plano de Avenidas, de São Paulo, e o Plano Agache, no Rio de Janeiro, que abordaram diversos aspectos como legislação urbanística, habitação e ordenamento territorial.
Já no final da década de 50, no governo de Juscelino Kubistcheck, trechos e linhas férreas considerados pouco lucrativos foram desativados, período no qual também surgiram as primeiras montadoras transnacionais de veículos no Brasil. Assim, a construção de rodovias associado à demanda automobilística significava maior lucro às companhias do ramo, devido ao fato de serem ferramentas vitais do circuito produtivo a partir do processo de escoamento de mercadorias.
Depois de influenciar os investimentos de governos do mundo todo em obras públicas na melhoria e expansão dos sistemas rodoviários, a indústria automobilística, hoje, sofre uma pressão grande por mudanças. Entende-se cada vez mais que a mobilidade urbana vai além do deslocamento sobre vias, envolvendo pessoas, comportamentos, instituições e, considerando toda transformação das cidades, buscam-se propostas por novas posturas comportamentais individuais, coletivas e institucionais. Neste sentido, grande parte provêm de incentivos públicos.
A influência dos poderes públicos na construção da matriz de transporte
A partir da democratização do país, o processo de planejamento urbano passou a ser visto como um processo político e de participação social. Com a Constituição de 1988, os planos diretores começaram a ser reconhecidos como principal instrumento de implementação da política de desenvolvimento e expansão urbana municipal. Em 2001 surge o Estatuto da Cidade que estabelece o “direito à cidade sustentável”, elencando princípios e diretrizes que devem ser adotados nos planos diretores, obrigatórios para cidades com mais de 20 mil habitantes.
Porém, o que ainda temos são incentivos pautados no desenvolvimento econômico viabilizado pelo setor automobilístico, deixando de lado as questões sociais e ambientais. Como exemplo, a reprodução de políticas rodoviaristas desde o governo de Getúlio Vargas, o “cinquenta anos em cinco” de JK, e os constantes incentivos de Governo, como a redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e isenção de ICMS para automóveis, a geração de créditos fiscais e o estímulo às exportações para as indústrias do setor.
No entanto, para uma matriz de transporte que depende de volumosos investimentos financeiros para reduzir o déficit de infraestrutura, a crise política e econômica que o Brasil enfrenta só tende a piorar a situação. Com as contas públicas desequilibradas, o governo federal não tem dinheiro em caixa para destinar obras necessárias à ampliação da malha de transportes pelo Brasil.
Recentemente, diante da pandemia do Covid-19, a indústria de óleo e gás entrou em crise no mundo. Devido a queda no consumo de combustível em razão do isolamento social e a quase inexistência de oleodutos para transportá-lo, o preço do barril de petróleo só vem caindo. A oscilação na aliança entre Rússia e Arábia Saudita e os cortes na produção, também não seguraram os preços. Paralelamente, o maior fundo de investimentos do mundo, Norges Bank, decidiu excluir companhias de petróleo, mineradoras e geradoras de energia de seu portfólio, incluindo Vale e Eletrobras, ambos por danos ao meio ambiente.
Uma das alternativas para desatar este nó logístico é a adoção de concessões, sistema pelo qual o governo transfere à iniciativa privada serviços de construção, reformas e administração de rodovias, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos. Nessa transferência, as empresas fazem um investimento que, naturalmente, terá algum retorno financeiro. Entretanto, ainda encontra-se dificuldades por não haver empresas suficientemente interessadas em investir, pelo sistema apresentar problemas estruturais que não oferecem segurança a eles, fazendo com que toda matriz de transporte fique cada vez mais atrasada.
O sistema de rodízio: os dois lados da moeda
Diante dos incentivos fiscais, a crescente valorização da “cultura do carro”levou à um excesso de tráfego nas metrópoles brasileiras. Além da concentração de pessoas nas cidades, a falta de planejamento urbano e o maior poder de consumo das famílias, São Paulo apresenta hoje cerca de 20 milhões de automóveis em circulação (Detran SP, 2019). Isso culmina no aumento de congestionamento no estado a cada ano, de forma a não ser suficiente as construções de mais vias de acesso, pois o espaço da cidade é limitado.
Com isso, a fim de promover a gestão do tráfego, o rodízio de veículos em São Paulo, ou a Operação Horário de Pico implantada pela CETSP (Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo), foi uma restrição à circulação de veículos automotores na cidade de São Paulo proposta desde 1996. Atingindo veículos particulares e de empresas de qualquer cidade, excetuando-se aqueles que realizam funções essenciais, é aplicada de acordo com uma escala sobre o final da placa e em horários de maior pico de trânsito do dia.
Com base em relatórios de desempenho do sistema viário da CETSP, é possível observar a evolução das velocidades médias (Km/h) no trânsito da grande São Paulo. Entre o período de 2010 a 2012, principalmente pelo surgimento do Programa Olho Vivo, não houve análise dos dados, mas, de modo geral, nota-se que, mesmo ao longo dos anos, a velocidade média do tráfego geral permeia entre 15 e 25 km/h, não dando credibilidade suficiente à restrição de veículos proposta, igualando a velocidade de carros à charretes.
No entanto, a proposta de rodízio apresenta inúmeras vertentes. O fato de restringir o tráfego de veículos por meio do número final da placa incentiva a população a possuírem dois carros ou ao menos uma moto à disposição, não tendo que se adequar ao rodízio. Para ativistas, a preferência e o estímulo ao uso do carro como veículo prioritário deixou sequelas na população, sendo o principal indicador da falta de políticas públicas para a mobilidade.
De acordo com o Mapa da Motorização Individual no Brasil de 2019, o total da frota de automóveis passou de 37,1 milhões para 65,7 milhões em dez anos, destes, 40% está relacionado aos grandes centros urbanos, ou seja, que já enfrentam os piores problemas de trânsito e transporte. Já a frota de motos, nesses dez anos, passou de 13 milhões para 26,7 milhões.
O sistema automobilístico se disseminou de forma rápida sem o respaldo quanto aos problemas decorrentes de seu emprego. Ruas foram alargadas visando resolver os congestionamentos, vias de mão única, instalação de semáforos, pontes duplicadas, vias expressas construídas, cada vez mais o patrimônio arquitetônico, e a vida em público como um todo, foram alterados para acomodar um número crescente de automóveis.
Toda multiplicação de espaços para automóveis e o advento da produção em massa sempre estiveram acompanhados do aumento da densidade do tráfego. O setor automobilístico chegou a representar 4% do PIB do Brasil em 2016, porém com o crescente avanço e busca por carros elétricos, autônomos, conectados, e até a mobilidade compartilhada, está fazendo o cenário de empresas mudar, necessitando de um investimento bem maior para alterar sua estrutura. Conjuntamente, toda essa crise atingiu quase todas as 65 fábricas do país, o setor mandou 370 mil funcionários para casa, prevendo uma perda de R$ 42 bilhões.
A fim de promover o isolamento da população diante do novo coronavírus, a Prefeitura de São Paulo aderiu ao “super rodízio” de 24 horas. Contudo a medida para distanciamento social foi ignorada, apresentando um aumento de 10% na ocupação em ônibus, de 12 a 15% o número de passageiros nos trens urbanos e 14% na Linha Amarela do Metrô logo no primeiro dia, deixando claro o desequilíbrio entre oferta e demanda no sistema público. Logo, a medida foi suspensa na segunda-feira, dia 11 de maio.
Assim, é notório que a proposta, elaboração e implementação dos planos sempre está sujeita à conjuntura de cada momento, ao contexto e às disputas políticas, aos atores e interesses envolvidos, à situação econômica e ao nível de envolvimento da sociedade nas discussões. A fim de obter efetividade nos planos, observa-se a necessidade da implementação de medidas definitivas nos centros urbanos.
O fracasso dos carros e a possibilidade de dimensionar espaços urbanos para a população
O conjunto de externalidades negativas influenciadas pelo aumento do número de veículos têm sido negligenciadas como pontos de reflexão nos processos de avaliação, planejamento urbano e implementação de políticas públicas. Como exemplos a poluição sonora, do ar e visual, o aumento do número de acidentes de trânsito, as deseconomias causadas pelos congestionamentos, a dependência de um sistema de produção desregrado e a degradação de cidades, batendo de frente à ambições de sustentabilidade do restante do mundo.
Seja uma pandemia global, má qualidade do ar ou segurança de cidadãos, as cidades continuarão sendo confrontadas e terão que perseverar por meio de interrupções. Embora a restrição de viagens nesse momento seja extremamente importante para controlar a dissipação do vírus, precisamos manter o movimento voltado à segurança e resistência das cidades, de forma a analisar todas as opções disponíveis, desde ônibus, metrô, caminhadas e até a micromobilidade.
Observa-se que o incentivo ao automóvel está fadado ao fracasso, como dito anteriormente. A falsa sensação de que ampliar as áreas de circulação viária resolverá o problema vai de encontro com uma matriz automobilística que impulsionou quase 2,5 milhões de veículos em 2019 (ANFAVEA, 2019). Ademais, a crise influenciou negativamente a produção de automóveis, causou diminuição nos pedidos de licenciamento e na geração de empregos diretos no setor, pressionando o setor público na tomada de medidas que possam subsidiar a mobilidade urbana.
Hoje, as ruas são dominadas pela engenharia de trânsito, sendo planejadas e remodeladas prioritariamente para os automóveis, se tornando o maior inimigo das vias urbanas, as quais ficaram de lado e perderam seu espaço no processo de evolução das cidades. No entanto, o momento atual trouxe a importância desse espaço para as pessoas. Hoje, não faz mais sentido destinar espaço aos automóveis enquanto busca-se a construção de cidades sustentáveis, seguras e integradas. Este momento pode ser útil para realizar mudanças que promovam um espaço exclusivo e necessário, a fim de priorizar a mobilidade e que não aumente os riscos de transmissão do vírus.
Como em outros países, as cidades brasileiras também enfrentam dificuldades em manter as pessoas separadas. Muitos dos trabalhadores essenciais dependem exclusivamente do transporte público para seus deslocamentos. Logo, a necessidade de investir no transporte público com um planejamento inteligente da demanda pode promover o futuro nas cidades mais voltadas às pessoas, sendo eficientes e garantindo a segurança ao deslocamento dos cidadãos, com integração à outros modais, como bicicletas e patinetes.
O fornecimento de espaços para estacionamento não é atribuição de nenhuma das três esferas de governo (Município, Estado ou União), dando ao automóvel cerca 25% da área de um empreendimento. O ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) divulgou uma comparação do espaço ocupado por um carro em uma vaga de estacionamento, o qual corresponde ao espaço ocupado por 10 bicicletas, 5 motocicletas e outros, como segue. De acordo com a CETSP, cada carro de passeio leva, em média, na cidade 1,2 pessoa por viagem. Já o ônibus, por viagem, em média, pode atender 90 passageiros, entre embarques e desembarques.
O arquiteto Jan Gehl, numa entrevista concedida à revista Vida Simples, diz“O congestionamento é, sem dúvida, um dos maiores problemas das grandes cidades. E a chave para resolvê-lo é entender que a demanda correta deve ser por mais opções, por mais liberdade de escolha de meios de se locomover do ponto A ao ponto B”.
As prefeituras e os Estados têm dados sobre os horários de maior fluxo de veículos, e, aliado a uma plataforma que permita direcionar a demanda e oferta de ônibus, há condições de estabelecer uma estratégia que não prejudique o deslocamento de trabalhadores. Por fim, a revisão dos planos diretores e o avanço das discussões sobre sustentabilidade urbana nos colocam em um novo momento. Neste contexto, os carros perdem seu protagonismo, o transporte público é incentivado e as cidades se tornam mais acolhedoras para as pessoas.
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REFERÊNCIA
ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores. Produção total de automóveis no ano de 2019. Disponível em: <http://www.anfavea.com.br/docs/siteautoveiculos2019.xlsx>. Acesso em: 18 de maio de 2020.
Brasil. Estatuto da cidade (2001). Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, p. 35, 2001.
Detran SP. Quantidade de automóveis no estado de São Paulo. Disponível em: <https://www.detran.sp.gov.br/wps/wcm/connect/portaldetran/detran/detran/estatisticastransito/sa-frotaveiculos/d28760f7-8f21-429f-b039-0547c8c46ed1>. Acesso em: 18 maio de 2020.
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, ed. 4, 2006.
VASCONCELLOS, E. A. A cidade, o transporte e o trânsito. São Paulo: Prolivros, 2005.