A Falência do Transporte Público Concordata

A parte 3 do especial traz soluções para a mobilidade urbana postas em prática no Brasil e no mundo

Nas duas primeiras partes dessa coletânea sobre a crise no transporte público abordamos aspectos internos e também externos que levam à falência dos meios coletivos de transporte no Brasil. Na terceira e última parte abordamos soluções que têm sido adotadas por países e cidades do mundo todo para combater justamente os pontos de estrangulamento que hoje afligem as operações de transporte público no país. 

Como começamos falando sobre decisões políticas no primeiro texto, começamos este também com o tema. 

Agenda política de combate à falência do transporte público

Sem vontade das esferas executiva e legislativa é muito difícil pensar na requalificação do transporte público, pois o setor é altamente regulado pelo poder público. Mas saídas têm sido apresentadas por gestores nacionais e internacionais. 

No Brasil, especialmente após a Lei da Mobilidade Urbana de 2012, o tema ganhou força com a obrigatoriedade das cidades maiores de 20  mil habitantes apresentarem seus planos de mobilidade. Com a necessidade de discutir tais políticas, a observação de práticas internacionais têm sido mais intensa e, como consequência, propostas para repensar a mobilidade nas cidades são apresentadas, sobretudo para requalificação do transporte público e diminuição do uso de carros. 

Uma iniciativa com foco na qualificação do transporte público foi adotada na França, é a taxa na folha de pagamento das empresas. A Taux Du Versement Transport (TVT) incide sobre a folha salarial de todas as empresas com mais de 11 funcionários. Em 2010 esse imposto financiou 40% do transporte público parisiense. 

Hoje no Brasil existe o Vale-Transporte, mas como abordamos no texto 2, há cada vez mais desemprego e informalidade e, assim, menos pessoas recebem o direito. Com a taxa sobre a folha de pagamento o imposto ajuda a baratear as operações de transporte como um todo, incluindo pessoas que não possuem carteira assinada. 

Compartilhando o ônus da mobilidade

É consenso entre especialistas que o transporte individual é o grande responsável pela queda de demanda do transporte público, seja de forma indireta – décadas de facilitação de acesso ao crédito para compra de automóveis e subsídios para gasolina – seja de forma direta – mais carros na rua geram mais trânsito que afeta também quem anda de ônibus. 

Pensando nisso, taxar quem anda de carro tem sido uma solução. Nos textos anteriores abordamos a taxa de congestionamento, já aplicada em Londres, Estocolmo e Singapura, agora também planejada em Nova Iorque. Nessas cidades, perímetros urbanos de grande circulação possuem restrições. Quem quiser andar por regiões centrais e importantes precisa pôr a mão no bolso. 

Em Nova Iorque o Uber foi um grande protagonista do lobby para a criação da taxa de congestionamento por lá, apostando que o desestímulo ao carro privado beneficia seu modelo de negócios. Sendo assim, mesmo ao taxar o app de corrida incluindo a taxa de congestionamento, essas empresas contribuem mais para a mobilidade, e potencialmente, aumentam a sua demanda a partir de pessoas que abandonam o carro próprio para fugir da taxa. Outra saída, essa já proposta por vereadores da cidade de São Paulo e adotada por Porto Alegre é a taxação de aplicativos de carros compartilhados, como Uber e 99, que se aproveitam do espaço viário limitado para oferecer um serviço, aos moldes do táxis, sem encarar qualquer obrigação.

Menos incentivo ao carro privado

Algumas propostas acima já desestimulam o uso do carro privado em alguma medida, mas não mexem com a estrutura que apoia do uso de carros. 

Recentemente a prefeitura de Porto Alegre tirou a obrigação de novas edificações possuírem estacionamentos, seguindo o exemplo da cidade de São Paulo. Diversos municípios no país obrigam a construção de vagas de garagem, variando com o tipo de empreendimento (de alto padrão, com mais vagas, ou de menor padrão, com menos).

A não obrigatoriedade, porém, é uma mudança importante para novos empreendimentos e garante que o território urbano seja aproveitado para outras coisas: mais habitações e espaços de lazer e menos locais para os carros. Dessa forma, quem não anda de carro não precisa pagar mais caro por um espaço urbano só por causa da necessidade de ter vagas. 

Mundo afora, tendências do século XX de priorização dos carros, época de seu boom, têm sido paulatinamente transformadas. Proibição de drive thrus, quarteirões inteiros para pedestres e estacionamentos públicos com taxas estão entre as medidas adotadas por governos para diminuir carros e aumentar a mobilidade sustentável e humana. 

Bilhetagem aberta e novos negócios

A cidade de Helsinque, na Finlândia, abriu sua bilhetagem para todos os operadores que queiram vender bilhetes do transporte público da capital. Provedores de bicicletas ou carros compartilhados, por exemplo, podem oferecer integração com o transporte público, beneficiando o fluxo de passageiros dos modais coletivos. Como contrapartida, essas empresas devem compartilhar API’s públicas com suas informações de uso, contribuindo para o planejamento inteligente das cidades. 

Para além disso, a bilhetagem aberta permite a integração tarifária e tecnológica entre sistemas diferentes, tornando possível a mobilidade como serviço. Ao pensar numa estratégia de mobilidade de “ponta a ponta” as cidades ganham em muito em qualidade de serviços, atraindo consumidores que até então viam o carro como única alternativa. O ônus do uso de carros pode ser diminuído, por exemplo, com a integração entre carros compartilhados e o transporte público, oferecendo melhores alternativas de mobilidade à população. 

Os operadores de transporte público, por sua vez, não devem temer o avanço e a integração com outros modais de transporte, pelo contrário, devem se preparar para serem protagonistas dessa transformação, agindo para oferecer serviços e produtos que sejam mais do que apenas os veículos que transportam as pessoas. A recorrência e o grau de informação de clientes abre margens para novos negócios executados por operadores de transporte público, criando fontes de renda extra tarifárias. São exemplos carteiras digitais, já famosas no ramo do varejo e ainda não exploradas no setor de transportes. 

Conclusões: o que não queremos, um olhar para a Venezuela

Depois da quarentena o transporte público vai voltar ao normal? Isso não é possível, pois o normal é justamente o problema. Estamos em um caminho onde clientes não conseguirão pagar pela passagem, pois ela estará muito cara, e operadores não poderão custear as operações, pois não tem clientes. 

Nossa vizinha Venezuela, como último exemplo deste texto, embora por razões distintas, entrou nesse ciclo e não saiu mais. A hiperinflação que assola o país retirou das ruas cerca de 90% da frota de transporte público na Venezuela diante impossibilidade de arcar com os altos custos das peças de reposição, de acordo com os sindicatos.

Um pneu para um ônibus grande, por exemplo, custa 1 bilhão de bolívares, cerca de 300 dólares no mercado negro. Entretanto, um ônibus de 30 passageiros rende apenas 5 milhões de bolívares diários (1,50 dólar). Os problemas de mobilidade colapsaram o metrô de Caracas, porque os absurdos preços dos bilhetes não cobriam os custos de operação. 

Diante da falta de meios para se deslocar no país, começaram a proliferar veículos privados – caminhões, caminhonetes e vans-, sem segurança, lotados de passageiros que os apelidaram de ‘canis’, como mostram fotos de Marco Bello no El País.

Por isso tudo, longe de soar alarmista, devemos ser precavidos, pois ainda estamos num caminho com volta. Podemos não nos tornar a Venezuela, embora estejamos no caminho para sê-la. O Brasil precisa enfrentar essa crise com responsabilidade e transparência, e o debate aqui não será política social versus ajuste. O debate que deve existir agora é a política de gastos obrigatórios e a concessão crescente de subsídios para grupos sociais versus preservar a solidez do serviço público essencial, para garantir a continuidade da política social. 

A política social proveniente do transporte público não é conquista de um Governo é uma conquista da sociedade que tem que ser preservada. O temor é a política feita com o transporte e não para o transporte e o seu modelo de negócio estarem colocando em risco um serviço tão essencial para nossa população.

O transporte urbano nacional é o reflexo perfeito na microeconomia de todos os desafios e reformas estruturais que o Brasil precisava enfrentar antes e agora mais do que nunca depois da crise. Os problemas da pós-pandemia (coronavírus) não serão novos. Serão os antigos problemas só que agora potencializados com o fechamento da economia pelo período de quarentena. 

Nós já sabíamos que empresas de ônibus estavam quebrando, que a perda de passageiros acontecia na casa dos dois dígitos, sabíamos também da existência do desastre regulatório, da incapacidade do governo de criar projetos de infraestrutura e do desafio de investir em inovação no setor. Os problemas já estavam aí. 

A torcida agora deve ser para que nesse momento triste em que vivemos a sociedade construa uma majoritária consciência de que é preciso enfrentar os problemas. Que não é simplesmente elevar o valor da tarifa que as contas do sistema de transporte público voltam para o ponto de equilíbrio. 

O aumento da tarifa hoje é muito diferente do que era há 15 anos porque as condições mudaram. O peso da tarifa no orçamento familiar aumentou, a renda caiu em relação ao começo da década, o desemprego e a informalidade aumentaram, a população envelheceu, o combustível encareceu, a regulação piorou, o setor não se desenvolveu, não inovou, e a concorrência externa finalmente chegou. Ou seja, o setor perdeu competitividade. Esperamos que o efeito colateral desse vírus seja o ganho de consciência de que é preciso avançar reformas. 

O maior obstáculo para as reformas são a sociedade e a política. Precisamos ter regras mais uniformes para o setor. Parte do caos são as cada vez maiores concessões, exceções e isenções, obrigações acessórias e regras específicas. A agenda existe. Agora a dificuldade dessa agenda avançar começa na organização dos empresários/operadores como grupo de interesse não para pedir subsídio e sim para pedir reformas. Se não estiverem dispostos a isso é melhor irem tentando desimobilizar seus ativos.

Leia a parte 1: Crise no financiamento

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Redação Agora é Simples

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