Em série especial de 3 textos abordamos a história inicial da Uber e suas similares no Brasil, as consequências desse modelo e os caminhos que rondam o setor
Vimos até agora a estratégia de penetração no mercado de Uber, Lyft, 99 e suas similares, chamadas de Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs) em legislação da cidade de São Paulo.
Na parte I nos aprofundamos em suas estratégias retóricas e como utilizam disso para surfar na ausência de marco regulatório. Na parte II chegamos as consequências negativas do modelo de negócios de carros compartilhados por app e os avanços que cidades fizeram na governança urbana.
Agora, na parte III, abordaremos os desafios que se impõem ao modelo da Uber, as concorrências que despertam e finalizamos com o papel do transporte público nessa questão.
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O futuro com carros sem motorista
Não é irreal dizer agora em 2020 que carros autônomos, destes que se dirigem sozinhos, estarão disponíveis à compra em pouco tempo. Carros semi-autônomos da fabricante americana Tesla já estão no mercado há anos e os principais impedimentos hoje são marcos regulatórios e opinião pública negativa.
Isso interfere diretamente nos planos da Uber e semelhantes de diminuir seus custos operacionais com motoristas, antes que novas resoluções sejam passadas mundo afora as obrigando a arcar com encargos trabalhistas. Talvez não haja tempo o bastante.
Enquanto não há tempo para algumas, outras nadam nesse novo mar. É o caso própria Tesla, que recentemente anunciou que colocará milhares de carros autônomos na rua ainda este ano. A empresa tem utilizado visão computacional e sensores há anos em seus carros elétricos e agora promete uma solução de direção autônoma onde basta apenas uma atualização para que modelos não-autônomos recebam a novidade.
O plano da empresa é mais ousado do que o de qualquer outra, pois a Tesla já possui sensores em carros comuns na rua, diferentemente de competidoras que têm apenas uma centena de testes rodando, como a Uber e a Waymo.
A quantidade de informações em bancos de dados é diretamente ligada à qualidade de qualquer Inteligência Artificial, necessária para os carros autônomos.
Além disso, os clientes da Tesla já estão acostumados com um carro que é aberto por aplicativo e totalmente digital, contribuindo para a adoção inicial e diminuição da barreira negativa.
Outro ponto importante nos carros autônomos da Tesla é que eles apostam em serviços, onde não possuímos o carro e só o solicitamos. E nesse momento podemos ainda escolher dirigir e só acionar o modo autônomo se estivermos confortáveis. Ou seja, a barreira de entrada causada pela percepção negativa das pessoas em um carro que se dirige sozinho é menor, pois elas estão aptas a dirigir.
O carro só anda sem motorista quando quisermos ou entre um chamado e outro, conseguindo o que a Uber e afins mais querem mas ainda estão muito longe de alcançar: não ter motoristas para pagar.
Nesse cenário, a Tesla se torna uma grande concorrente à Uber, fazendo frente aos seus serviços e tornando ainda mais inviável o modelo de negócios atual dos carros compartilhados por app.
Imagine que você poderá comprar um carro autônomo – cerca de $38 mil dólares na versão básica – e usá-lo como robotáxi nas horas vagas, fazendo cerca de $30 mil dólares ao ano. Em pouco mais de 12 meses o investimento inicial se paga.
É claro que essas são previsões otimistas. No Brasil, em particular, ainda não temos estrutura para carros elétricos, o que atrasará a adoção desses modelos. Além disso, um carro que se paga “sozinho” logo seria bom demais pra ser verdade, enchendo nossas cidades desses veículos e diminuindo drasticamente o preço das viagens, tornando mais difícil lucrar assim.
Outro fator é que não existe qualquer marco regulatório para carros autônomos no Brasil, embora a experiência com o “problema Uber”tenha tornada mais dinâmica a estrutura de gestão das cidades e do uso viário.
Ter comitês e protocolos voltados à inovação impede experimentos catastróficos, como a morte de uma pedestre em testes do carro autônomo da Uber no Arizona (EUA), mas não limita a inovação, uma vez que possui estrutura para ao menos avaliar novas soluções. É o caso do Conselho Municipal de Uso Viário (CMVU) na capital paulista.
De toda forma, modelos de carros compartilhados por app correm sério risco no curto prazo. Já não lucram, pagam mal seus motoristas e têm pela frente que lidar com a voracidade de uma empresa muito à frente, como a Tesla.
Para onde a economia compartilhada pode seguir…
Ao longo dos três textos dessa série especial sobre o modelo de negócios da Uber e suas similares falamos algumas vezes sobre economia compartilhada e como essas empresas se apropriaram do termo para dar vazão à necessidade de se diferenciar.
Entretanto, economia compartilhada não é algo que nasceu ontem. Mesmo o transporte público pode ser considerado uma forma de economia do compartilhamento, uma vez que todos os usuários dividem os custos do sistema. Ainda por cima, motoristas e profissionais sempre tiveram todos os seus benefícios e direitos cobertos pelas leis vigentes.
O que está em desuso é um serviço que não atende às necessidades específicas de cada indivíduo, algo que o transporte coletivo urbano não consegue pois é um dos setores mais regulados do país e que está à beira da falência por regulações ruins – além da falta delas em outros setores.
A transformação digital de qualquer indústria é complexa. Já a transformação digital de um dos setores mais tradicionais do país, o de transportes, apresenta desafios maiores ainda, levando em consideração legislação, tecnologia, o estigma de corrupção, etc.
Nesse caso, não precisamos de menos regulação, mas de normas melhores, que incentivem a inovação e regulam setores que causam externalidades negativas, como é o caso das empresas de tecnologia no setor de transportes.
Nesse mundo ideal, não precisaremos nos preocupar novamente com soluções que se dizem mágicas, pois o transporte público já será altamente eficiente.
No caso da Uber e suas similares, previsões de mercado enxergam um caminho turbulento à frente. Para continuar burlando legislações que as obriguem a pagar dignamente seus motoristas, especialistas preveem uma virada ao segmento de franquias, onde franqueados podem usar a tecnologia de conexão entre motorista-passageiro.
Nesse caso, a Uber não teria mais relação com o motorista, somente com o cliente final e o dono da franquia e chefe dos motoristas. Entretanto, esse modelo não exime totalmente a empresa de tecnologia de seus deveres e, em determinadas visões, pode colocá-la como co-responsável pelos trabalhadores.
Um exemplo disso é o setor da moda, um dos setores mais lucrativos do mundo, que utiliza mão de obra terceirizada em suas costuras, se dando o direito assim de ignorar violações de direitos trabalhistas. Quando expostas nessas situações, grandes marcas apenas rompem contratos e fazem notas de repúdio, ignorando que na verdade estavam terceirizando trabalho escravo num problema estrutural.
O ponto aqui é que o mundo está mais esperto para manobras como essas.
A década da virada
Todo especialista em mobilidade urbana está falando como a década de 2020 será importante para o setor. Inovações introduzidas – com permissão ou não – na última década estão alcançando amadurecimento.
Novas soluções estão a caminho e marcos regulatórios são promulgados cada vez mais rápido. Embora ainda excessivamente focadas em “regulação”, cidades estão mais cientes da mega estrutura do espaço urbano e da necessidade de operar diversos fatores para continuar melhorando a vida urbana e não entregar a vida em cidade às empresas de tecnologia.
Estas últimas, por sua vez, estão cada vez mais em descrédito e desconfiança no Ocidente, nos mais diferentes setores, sobretudo pela falta de transparência em suas mega operações de dados.
Dessa forma, será cada vez mais difícil usar a tática “peça perdão, mas não peça permissão”. O que é bom para a sociedade. Só precisamos ter mais clareza de que regulações servem também para estimular a inovação, e não só atrasá-la.
A inovação, por sua vez, precisa estar atenta às demandas da sociedade, e não ser construída a 4 paredes pela elite tecnológica. Afinal, de boas intenções o cemitério de patinetes está cheio.
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