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Previsão da falência do transporte público era indicado antes mesmo da pandemia

Setor registra prejuízo operacional de R$11 bilhões e funcionários do setor reivindicam por direitos, inclusive à vacinação contra Covid, enquanto cidades internacionais já avançam nesse quesito

Foto: Viatrolebus.

O transporte público tem registrado um prejuízo operacional superior a R$11 bilhões em decorrência principalmente da queda no número de passageiros. A evasão do sistema já era observado antes da pandemia e a crise financeira era algo que especialistas do setor já previam.

Dessa forma, muitas empresas tiveram que recorrer ao pagamento parcelado aos colaboradores, o que causou indignação dos mesmos e hoje, cidades do interior de Minas Gerais e São Paulo registram greves no sistema em prol de seus direitos. Além disso, cidades como Sorocaba/SP e Fortaleza/CE reivindicam por vacinação contra a Covid-19, visto que motoristas e cobradores de ônibus apresentam 70% de risco de contágio pelo novo vírus.

Enquanto o Brasil registra esse atraso, Dubai e as autoridades do transporte e saúde administraram a vacinação a todos profissionais e motoristas de táxi e transporte público qualificados, o que representa mais de 20.000 pessoas. O mutirão iniciou com chamamento em canais específicos e com um centro equipado para vacinar 150 pessoas por hora. 

Antes da pandemia, a falência no setor foi tema no Agora é simples, o qual abordou os desafios do modelo tarifário e indicadores que representam altos custos aos sistemas de transporte. Com isso, traz tendências nacionais e globais de novos hábitos e tecnologias, além de apresentar um panorama de soluções e estratégias que apontam ponto a ponto os problemas do sistema.

Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec em entrevista ao Podcast Agora é simples com ONBOARD, fala sobre a crise intensificada pelo veto do auxílio financeiro que seria destinado às empresas do setor de transporte público, além de novos formatos de licitação que ainda podem ajudar na recuperação pós-pandemia. 

Recentemente, como alternativa, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) encaminhou ao Governo Federal um projeto que prevê a construção de um novo marco regulatório do transporte. A proposta é que a remuneração às empresas de transporte seja feita pelo serviço prestado e não pela quantidade de passageiros que transportam. 

“A tarifa passaria a ser uma responsabilidade do poder público que a fixa como quiser, mas paga o custo do serviço realizado”

segundo Otávio Vieira da Cunha Filho, presidente da NTU, em entrevista ao Estadão.

Hoje, o sistema de transporte enfrenta inúmeros problemas e, segundo o presidente da NTU, as empresas têm ficado “em cima do prefeito” para poder equilibrar as contas, porém a alternativa que encontram é aumentar o valor da tarifa para tentar se manterem ativas. Assim, quando não há equilíbrio econômico, a frota é dificilmente renovada e inúmeras outras consequências se desencadeiam, como a queda na qualidade do serviço e a falta de inovações.

http://agoraesimples.com.br/wp-content/uploads/2021/03/investiremempresadetransporte.mp3

Essa fala de Carlos Guedes, empresário de ônibus em Belo Horizonte, é um trecho do episódio do Podcast Agora é simples com ONBOARD sobre a visão de um empresário do setor sobre o sistema de transporte público neste momento que estamos passando. Ouça agora:

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“As empresas continuam operando no vermelho e com risco de novas paralisações”, diz diretor do setor de transporte público

A necessidade de políticas públicas eficazes para qualidade e sustentabilidade do sistema de transporte brasileiro

O setor de transporte público brasileiro já enfrenta crise de financiamento há alguns anos e, com a pandemia, a situação tem levado o setor cada vez mais próximo à falência devido a redução drástica e constante de passageiros. Essa crise envolve o fato de toda a receita do setor ser proveniente dos passageiros pagantes.

O modelo de sustentação financeira atual apresenta poucos casos de subsídio governamental ou outras fontes de receita que sejam razoáveis para suprir os custos operacionais, assim, com o aumento do estímulo ao uso do transporte individual e a insegurança da sociedade com o uso de ônibus neste momento, o sistema pode entrar facilmente em colapso.

Miguel Pricinote, diretor executivo da Viação Reunidas, empresa que paralisou suas operações por alguns dias em junho, faz um apelo ao poder público por meio do Agora é Simples “uma vez que as empresas fazem a operação do que os governos definem enquanto prestação de serviço. As empresas sozinhas e sendo remuneradas por passageiro, não serão capazes de reverter esse quadro.”

Por meio da perda de demanda do transporte público, a redução de receita gera queda de produtividade, resultando em desequilíbrio financeiro que provoca aumento da tarifa. Esse desequilíbrio reflete na perda de qualidade e competitividade do transporte público que, por isto, perde demanda, retroalimentando um ciclo vicioso.

Para conter os prejuízos relacionados à pandemia prefeituras do país todo diminuíram a frota em circulação ou, ainda, paralisaram totalmente a operação. Entretanto, como noticiado pelo Agora é Simples, para evitar contágios por meio de aglomerações é necessário que toda a frota esteja na rua, talvez até mais do que no período pré-pandemia.

Mesmo com diminuição da frota na rua, as empresas têm apresentando cerca de 30% a 95% de perda de receita ocasionada pela crise devido ao avanço da Covid-19 no Brasil. Algumas empresas de transportes de passageiros já suspenderam atividades, como nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Goiás, por exemplo.

Nacionalmente, o prejuízo em dois meses de pandemia se encontra em R$ 2,5 bilhões segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). O Consórcio de Transportes Metropolitano (CTM) revela que a pandemia já provocou um prejuízo de R$ 155 milhões e que a queda de demanda está em torno de 70%.

Entendendo as demandas do setor de transporte público brasileiro

A Viação Reunidas, uma das empresas que opera no transporte coletivo de Goiânia e região metropolitana, paralisou as atividades recentemente, entre os dias 13 a 17 de junho de 2020. Em nota, o Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo e Passageiros de Goiânia e Região Metropolitana (SET) informou que os trabalhadores estavam com salários atrasados desde maio e o auxílio alimentação não estava sendo pago.

“A operação já vinha sendo deficitária. Com a pandemia e uma redução de 80% do fluxo de passageiros e a manutenção total da operação e, como consequência, das despesas, a situação ficou insustentável. […] mesmo com todos os cortes e ajustes na gestão e na operação da empresa, não foi possível obter o equilíbrio, muito menos os pagamentos de fornecedores de insumos e dos colaboradores.”

Miguel Pricinote para a redação.
Na garagem da empresa, de mão dadas, motoristas rezaram para uma solução diante da crise. Foto: Reprodução.

Na última quarta (17), o SET, em nota, informou que a “empresa conseguiu recursos através de operação de crédito e já efetuou o pagamento do ticket alimentação dos colaboradores e estruturou um cronograma para o pagamento parcelado da folha de maio.” A companhia pretende retomar as operações de forma integral, mas ainda não há previsão, permanecendo assim com um funcionamento parcial da modalidade.

Referente à situação dos colaboradores, Miguel diz “Desde abril temos tido dificuldades de pagar os salários integralmente, eles vêm sendo parcelados, mas foram quitados dentro do mês. Agora, em junho, não pudemos fazer o pagamento do ticket alimentação e nem do salário. Buscamos linhas de crédito que só tivemos a aprovação de um valor pequeno no dia 17 de junho, quarta-feira. Conseguimos voltar a operar parcialmente, quitamos o ticket e vamos pagar a primeira parcela do salário na segunda, 22 e quitaremos o restante na semana seguinte.”

Em abril, três entidades ligadas ao transporte coletivo urbano assinaram um documento no qual alertaram a possibilidade de colapso no sistema por causa da pandemia do novo coronavírus. As entidades NTU (Associação Nacional de Transportes Urbanos), ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) e Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana pediam no documento a criação de um programa do governo federal para auxiliar a manter o funcionamento.

Um projeto de lei (PL 3364/2020) apresentado em maio de 2020 pelo deputado federal Fábio Luiz Schiochet Filho, do PSL de Santa Catarina, promove a instituição do Remetup – Regime Especial de Emergência para o Transporte Coletivo Urbano e Metropolitano de Passageiros. De acordo com o Regime, “os benefícios fiscais do Remetup destinam-se às pessoas jurídicas prestadoras de serviços de transporte público coletivo de passageiros urbano e de caráter urbano”.

O projeto ainda vai tramitar no Congresso antes de chegar à presidência da República. Dos benefícios propostos, serão excluídas empresas de transportes com dívidas em fazendas públicas federal, estadual ou municipal, inclusive as dívidas relativas à contribuições previdenciárias.

Sobre o apoio do poder público Miguel Pricinote complementa: “ O Governo do Estado elaborou um Plano Emergencial onde foi feita uma grande auditoria nas contas das empresas pela Controladoria Geral do Estado e comprovado um prejuízo, apenas nos primeiros 45 dias (período de 15/03 à 30/04/2020), de 23,5 milhões. No entanto, uma ação de recurso no STF impetrado pela prefeitura de Goiânia suspendeu o andamento do processo. Hoje, o nosso sindicato mantém conversa com o poder público para reverter essa situação e, juntos, encontrarem uma solução para o reequilíbrio dos contratos atuais.”

Em relação ao governo federal, entretanto, há a necessidade de medidas mais enérgicas e direcionadas, uma vez que até o momento“nenhuma empresa do sistema teve acesso a qualquer benefício fiscal, apenas as medidas provisórias trabalhistas foram usadas nas negociações com funcionários. “ aponta.

O papel do poder público na sustentabilidade do meio de transporte

Com a inclusão do transporte público como direito essencial em 2015 no artigo 30 da  Constituição da República, o ir e vir dos cidadãos passou a ser um problema do Estado. Operar o transporte coletivo de passageiros é, portanto, garantir um direito fundamental do ser humano dentro da sociedade.

Em cidades como Londres, Paris, Roma e muitas outras, o serviço de transporte conta com aporte parcial por parte do setor governamental, a fim de garantir a qualidade aos meios de transporte coletivo ao mesmo tempo em que o torna acessível aos cidadãos de situação econômica mais baixa da população.

Logo, diante da retomada econômica no pós-pandemia e da insegurança dos passageiros com o transporte público, a probabilidade de que o meio continue enfrentando uma queda na demanda é alta. 

Dessa forma, o Estado brasileiro deve criar condições para oferecer um serviço de qualidade, sendo hoje um momento oportuno para uma discussão ampla sobre a mudança na forma de financiamento do transporte por ônibus.

“Para termos um transporte de primeiro mundo, o que é possível, é preciso que os governantes assumam para si o transporte e criem uma política que entregue para o usuário um transporte digno, confortável, eficiente. Porque essa é a responsabilidade do poder público, uma vez que as empresas fazem a operação do que os governos definem enquanto prestação de serviço. As empresas sozinhas e sendo remuneradas por passageiro, não serão capazes de reverter esse quadro. O que vemos na quase totalidade do Brasil, é um serviço público essencial “órfão”, ou seja, um filho “enjeitado” por quem deveria zelar e cuidar, pois é uma obrigação Constitucional.”

finaliza Miguel Pricinote.

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Sem apoio, transporte público quebra em menos de um mês, afirma estudo

Pesquisa de Impacto no Transporte sobre a pandemia é promovida pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT). 

Menos de um mês, isso é o que 60% das empresas de transporte público brasileiras aguentam sem apoio direto do poder público em meio à pandemia de coronavírus, como mostra a pesquisa Impacto no Transporte da CNT. Nem 7% aguentam mais de 3 meses na atual conjuntura. 

Marcado por alta regulamentação e pouco espaço para investimentos, dado o modelo de financiamento, o setor de transporte urbano de passageiros enfrenta uma crise aguda com redução drástica de passageiros na quarentena. Diferentemente do setor aéreo, porém, o segmento ainda não recebeu qualquer sinalização do poder público de que terá ajuda para manter suas operações. 

É importante lembrar que antes mesmo da crise o transporte público brasileiro já enfrentava uma crise de financiamento, que limita acesso à novas tecnologias e inovações para eficiência operacional e experiência do consumidor. Com a crise, se acentuou a iminente falência do transporte público

Ainda de acordo com a pesquisa, 48,8% das empresas sentem que o acesso ao crédito está mais difícil do que antes da crise, o que é bastante impressionante, uma vez que o transporte público já possuía acesso bastante limitado ao crédito em comparação aos incentivos ao transporte individual

Grande parte das empresas já tomou ações para mitigar os prejuízos, embora ainda estejam longe de solucionar problemas. A maioria (53,3%) reduziu jornadas de trabalho, outra parcela considerável (33,6%) já realizou demissões. 

Para o setor de transporte urbano de passageiros uma das principais demandas é a disponibilização de linhas de crédito com prazos maiores e menos juros (60%), além da suspensão de impostos sobre combustíveis (57,3%). A suspensão da redução previdenciária também é citada por 51,8%. 

A pesquisa completa, incluindo mais perguntas e dados e outros setores pode ser acessada no site da Confederação Nacional de Transportes. 

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A Falência do Transporte Público Crise no financiamento

Série de reportagens especiais do Agora é Simples aborda crise no setor e saídas adotadas por cidades e governos pioneiros.

São cada vez mais urgentes transformações profundas no transporte público brasileiro. Desde 2013, com a insatisfação generalizada da população em relação ao preço da passagem, nas chamadas Jornadas de Junho que culminaram em diversas outras reivindicações, ficou claro que o ciclo de reajustes acima da inflação e estagnação na qualificação dos serviços não poderia continuar. 

No entanto, os fatos que levam à falência do modelo atual são muitos e envolvem diversos fatores. Para entender esse panorama levantamos pontos importantes numa série de três textos sobre a crise do setor de transporte público atual. 

No primeiro texto nos desdobramos nos desafios do modelo tarifário, na falta de políticas públicas e em pequenos mas impactantes investimentos obrigatórios em muitas cidades que não trazem o benefício esperado e geram altos custos aos sistemas de transporte. 

Na segunda parte, trazemos à tona tendências nacionais e globais que afetam diretamente a relação da população com o transporte público, como novos hábitos e tecnologias. 

Por fim, no último texto, longe de soar apenas pessimistas, trazemos um panorama de soluções e estratégias embasadas no estudo de boas práticas internacionais que combatem ponto a ponto os problemas apresentados nas duas primeiras partes da coletânea. 

Abaixo, a primeira das três parte desse especial do Agora é Simples

Modelo tarifário

O modelo de sustentação financeira do transporte público no Brasil é altamente dependente da tarifa paga pelo passageiro, com pouquíssimos casos de subsídio governamental ou outras fontes de receita que sejam razoáveis para suprir os custos operacionais. Com essa política tarifária, porém, há um círculo vicioso que se inicia no aumento das tarifas e consequente perda de competitividade em relação ao transporte individual (IPEA, 2016). 

Com aumentos constantes no preço do diesel, e estímulo ao uso do automóvel, o transporte público se mostra menos viável à população, e cada novo aumento na passagem tira ainda mais pessoas dos sistemas públicos de transporte. De acordo com a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) de 1999 a 2018 o aumento do óleo diesel foi 254,1% superior ao IPCA (Índice Nacional de Preços Amplo ao Consumidor) e 171,5% superior ao valor da gasolina, principal combustível do transporte individual, no mesmo período.

Hoje, calcula-se que o diesel já representa 27% da composição da tarifa do transporte público (NTU), valor que ficava em torno de 10% no passado (IPEA). Enquanto os aumentos no diesel são superiores ao IPCA e à gasolina, a queda no número de passageiros do transporte público se agrava. 

Fonte: NTU

Em vez de termos um custo elevado no transporte público por ele ser eficiente e de qualidade, temos um custo elevado por uma série de despesas obrigatórios e pela concessão de  uma série de subsídios em um sistema extremamente sensível aos interesses políticos. O que assistimos hoje é um fracasso desse projeto político de concessão descontrolada de subsídios que enfraqueceram o bem-estar social. Existe um consenso técnico de que o problema existe. O que precisa ser construído é o entendimento político da situação. 

A solução de subir a tarifa chegou no seu esgotamento e o problema só tem aumentado pois estamos tratando sintomas e não a doença. Em média, as famílias brasileiras gastam 8,9% de sua renda com transporte público (IBGE, 2018). Nas maiores cidades esse valor é ainda maior. De acordo com o estudo da Here Technologies paulistanos gastam 13% da renda com transporte coletivo, sem contar os subsídios públicos na ordem de 3 bilhões ao ano, que também é dinheiro do contribuinte. Cariocas gastam 12% da renda. Quando comparamos com outras cidades do mundo o abismo fica ainda maior, inclusive analisando cidades de países emergentes como o Brasil, a saber Buenos Aires e Cidade do México.

Para reavaliar esse cenário é necessária disposição política, que mexa com privilégios, seja coerente com benefícios e invista em infraestrutura e transformação digital, observando e convertendo para boas práticas internacionais. 

Esta é uma agenda muito difícil e requer um amplo debate sobre qual ajuste e qual a velocidade desse ajuste para que ela possa ser de fato implementada construindo uma outra visão da relação do transporte público com a sociedade.

Subsídio cruzado mal distribuído

O subsídio cruzado tem um fundamento positivo, pois funciona como um sistema que compartilha os custos entre a rede toda, como afirma Marcos Paulo Schlickmann, consultor em mobilidade urbana “O subsídio cruzado, em teoria, é muito bom. E quanto mais restrito seu âmbito, ainda melhor, ou seja: uma linha lucrativa ajuda a subsidiar outra linha não lucrativa”. O problema consiste quando o âmbito do subsídio é muito amplo. 

Essa amplitude acontece quando as gratuidades e benefícios (para idosos, estudantes, etc.) são estipuladas sem a devida fonte de recursos pelo poder legislativo e ou executivo e sem critério técnico para sustentabilidade dessas iniciativas. Portanto, essas políticas de descontos e passes livres acabam sendo divididas no custo total do sistema, ou seja, o usuário pagante está pagando também todas as gratuidades e descontos.

Um exemplo da incoerência do modelo diz respeito ao aumento da expectativa de vida da população e a inversão da pirâmide populacional no Brasil, que torna as gratuidades de idosos cada vez mais impactantes, contribuindo para aumentos acima da inflação na tarifa. Segundo o IBGE, idosos são 10,5% da população brasileira. Houve um aumento de 26% entre 2012 e 2018 e a tendência deve continuar como demonstram análises do instituto.

É importante lembrar que há idosos de classe média que poderiam pagar por suas viagens de transporte e contribuir para um sistema eficiente e economicamente viável. Situação igual para jovens estudantes de colégios particulares de classe média alta que recebem descontos.

Um sistema baseado em gratuidades e benefícios socioeconômicos faz muito mais sentido num país desigual como o nosso. Atualmente, pessoas economicamente vulneráveis, que precisam pagar a tarifa cheia, estão pagando também benefícios para pessoas de classes médias e altas. 

Além da comprovação de renda para concessão de benefícios, uma outra saída, que não envolva sua redução, inclui compartilhamento total dos custos do sistema também com quem não o usa “grande parte dos custos arcados pelos operadores de transporte público advêm do excesso de congestionamento nas vias urbanas, que reduzem a velocidade média operacional, logo faz algum sentido que os motoristas de carros particulares sejam parcialmente responsáveis por pagarem pelo atraso que eles causam aos passageiros de ônibus”, pontua Schlickmann. 

O excesso de carros gera distorções no espaço viário e aqueles que andam de forma coletiva acabam vivendo o mesmo trânsito daqueles que escolhem opções individuais. As taxas de congestionamento implementadas em cidades como Londres, Estocolmo e Singapura se mostram como alternativas ao subsídio cruzado para financiar o transporte público. Nessas cidades, perímetros altamente congestionados têm cobrança pelo uso do espaço viário, numa lógica de oferta e demanda na circulação de carros. 

Outras cidades mundo afora cobram em estacionamentos públicos, redistribuem impostos e cobram de empresas por funcionário em folha de pagamento, independentemente do colaborador usar ou não o transporte público.

Investimentos obrigatórios 

Por ser um serviço essencial à vida urbana, o transporte público é regulamentado pelo poder público e possui diversas obrigações. Entretanto, nem todas as regras a serem seguidas são tomadas baseando-se na realidade operacional dos sistemas. 

Por vezes a vontade política ultrapassa a realidade econômica, gerando custos extras que só encarecem o sistema sem trazer um benefício que realmente impacte a vida das pessoas e, como dito acima, sem uma contrapartida exata de onde virá o dinheiro para o investimento.

Wi-Fi nos ônibus

Visto com bons olhos por qualquer pessoa que seja perguntada, o Wi-Fi enfrenta uma realidade de contradições. Pesquisa de 2016 da Companhia de Engenharia e Tráfego da cidade de São Paulo (CET-SP) mostrou que 70,7% dos respondentes desconheciam a disponibilidade de Wi-Fi em ônibus. Dados mais recentes indicam que a situação não mudou muito. A Viação Grajaú, operadora de parte do sistema da zona sul da capital paulista, divulgou com exclusividade ao Agora é Simples que menos de 1% dos passageiros usam o Wi-Fi disponível em 800 veículos diariamente. 

A tendência faz sentido quando analisamos a cobertura de internet móvel no país. Com planos de internet cada vez mais acessíveis, a disseminação de dados móveis em todas as classes só aumenta. De acordo com a pesquisa TCI Domicílios de 2019 70% da população já acessa regularmente a internet no Brasil, sendo o celular meio de acesso para 97% dos consumidores. 

Em fevereiro de 2020 a Google, uma das maiores companhias de tecnologias do mundo, anunciou o encerramento de seu projeto Google Station, que se dedicava a oferecer Wi-Fi grátis em países emergentes, incluindo o Brasil. No anúncio a empresa destacou a dificuldade de encontrar um modelo de negócios sustentável para a iniciativa, apontando o barateamento de planos de dados móveis e a facilitação geral no acesso da população à internet. 

Ao oferecer o Wi-Fi embarcado o serviço é incluído nos custos operacionais das prestadoras de transporte público, o que no fim resulta numa passagem mais cara. Com a ampla abrangência de internet móvel nos celulares dos brasileiros o resultado final é o cliente pagando duas vezes por internet ao invés de tê-la gratuita, como é a proposta

Cobradores

Algumas cidades pelo país conseguiram eliminar a função de cobrador, substituindo por um sistema embarcado eletrônico por meio de smart cards. Apesar da possibilidade tecnológica existir sistemas de transporte público como o de São Paulo esbarram em legislações ou decisões judiciais na tentativa de diminuir custos com cobradores. 

A função foi aos poucos sendo substituída pela bilhetagem eletrônica, e hoje o sistema na capital paulista é responsável por receber menos de 6% dos passageiros que ainda pagam em dinheiro (SPTrans), além de auxiliar em dúvidas e na entrada de pessoas com mobilidade reduzida. Esse escopo de trabalho, porém, não é o suficiente para justificar o valor de R$800 milhões na folha de pagamento ao ano, segundo a Prefeitura. 

Empresas de transporte buscam qualificar seu quadro de cobradores para se tornarem motoristas, caminho natural antes mesmo da tendência de substituição, dada a dificuldade em se encontrar bons motoristas e a sua formação ser a principal forma de conseguir novos trabalhadores. Funções administrativas também podem ser aplicadas. 

A Viação Grajaú de São Paulo criou uma escolinha de requalificação dos cobradores para torná-los motoristas. A medida é extremamente respeitosa com a categoria ao oferecer mais do que uma alternativa, uma forma de desenvolvimento profissional e um exemplo a outras operadoras de transporte. Em resumo, não é sobre demitir, é sobre não recontratar.
Yuval Harari, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e autor do best-seller Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, já preconiza o que acontecerá nos próximos anos. Segundo o autor, milhões de empregos desaparecerão, embora não seja errado ou ruim acabar com funções repetitivas e chatas. Ele defende que novos trabalhos sejam criados no lugar, sobretudo aqueles onde as habilidades únicas de humanos façam a diferença “O que precisamos realmente proteger não são os empregos, são os humanos”.

No atual contexto, porém, a substituição ainda enfrenta bastante resistência política/sindical além de um dos principais problemas também ser a dificuldade em implementar uma bilhetagem que seja digital, de fácil aquisição de créditos online pelos clientes e com uma grande capilaridade de pontos físicos de compra para contrapor a falta de cobradores nos ônibus. 

Falta de agenda pública para enfrentamento

Por fim, para compreender a falência do modelo de financiamento do transporte público brasileiro é preciso falar na vontade política de fazer a mudança acontecer,  ou não. 

Há décadas a política brasileira para a mobilidade tem se concentrado em incentivar o transporte individual por meio de isenções e incentivos fiscais à aquisição e produção de automóveis, subsídios para gasolina e financiamento a longo prazo de veiculos (UBIRATAN, 2019). 

Com essas políticas o transporte público perdeu considerável competitividade em relação ao transporte individual, culminando no êxodo coletivo para o privado. Existem iniciativas ousadas que buscam propor uma agenda ativa do Estado Brasileiro para o transporte, que inclui fundos federais, estaduais e municipais, destinação de impostos, como o CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) sobre a gasolina, além de taxas de congestionamento, como abordadas em trechos anteriores. 

No próximo texto vamos nos aprofundar nos desafios do transporte público, trazendo tendências globais que já impactam e impactarão ainda mais sua operação. 

Leia a parte 2: Tendências globais

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