Diversos pontos da retórica favorável à Mobilidade como Serviço carecem de aprofundamento teórico e prático
O conceito de Mobilidade como Serviço (MaaS) é amplamente discutido em qualquer roda de conversa relevante sobre o futuro dos transportes. Popularmente conhecido como uma aplicação integrada de mobilidade, onde consumidores podem acessar serviços em uma mesma plataforma, o MaaS é também um novo sistema em nossas cidades em busca de ser o regime dominante.
A governança das aplicações do MaaS é uma das principais questões hoje, “especialmente porque muitas das inovações de mobilidade que promovem o compartilhamento são transações comerciais em vez de sociais e, portanto, tendem a buscar maximizar a mobilidade em vez de minimizá-la”( Bardhi e Eckhardt, 2012).
O que se estuda é se a mobilidade como serviço que está sendo pensada e construída entregará um modelo mais sustentável do que é hoje.
O MaaS promete benefícios aos cidadãos, por meio do conceito genérico de “liberdade”, para fazer escolha, reduzir custos com propriedade, uma solução porta a porta. Para as cidades, no guarda-chuva da “eficiência” para governos e autarquias e para o setor privado a possibilidade de “novos modelos de negócios”. O risco é o bônus ficar apenas no setor privado.
A promessa do MaaS vai de encontro com o desafio de uma demanda por viagens cada vez maior no espaço finito que são nossas cidades, dessa forma impõe novo desafio às políticas de transporte que buscam reduzir congestionamentos e poluição.
Isso acontece, principalmente, porque os defensores do MaaS optam por uma retórica e uma construção de relacionamento a partir do individual, sendo que os principais desafios que temos nas grandes cidades – trânsito, poluição sonora e ambiental, acidentes etc. são coletivos e socializado.
Este artigo se debruça sobre a publicação “Questionando a mobilidade como um serviço: implicações inesperadas para a sociedade e governança” (tradução literal) de Kate Pangbourne et al. a fim de trazer questões reflexivas sobre o MaaS, não com vistas à crítica destrutiva e conservadora, mas sim propositiva pensando na criação de sistemas realmente inclusivos, eficientes e benéficos para todos.
Com isso em mente, partimos para 3 consequências não desejadas, mas possíveis com a ampla adoção do MaaS em nossas sociedades.
Mais mobilidade x menos: crise ambiental
Um discurso recorrente sobre o MaaS é a diminuição dos carros na cidade, uma vez que as pessoas são desestimuladas a possuírem seu próprio carro. Isso faz sentido, mas quando olhamos para os dados do impacto da Uber, Lyft, 99 e similares notamos uma correlação entre sua chegada e o aumento de carros na rua.
Nos Estados Unidos dois estudos diferentes mostram que houve uma piora no trânsito das cidades americanas com a chegada desses serviços. As pesquisas apontam a troca de caminhadas e transporte público pelas viagens por aplicativo.
Num desses estudos 60% dos usuários de aplicativos de corridas usariam transporte público, andariam ou pegariam uma bicicleta para fazer a corrida, se o app não estivesse disponível, enquanto 40% tirariam o carro da garagem ou pegariam um táxi.
De fato, pessoas podem possuir menos veículos num mundo com amplo acesso ao MaaS, mas o total de quilômetros rodados não necessariamente tende a cair. Com a facilitação do acesso aos carros compartilhados e eminente integração com meios de transporte, o total de viagens pode subir, não contribuindo assim para a diminuição do trânsito, da poluição sonora e emissão de Co2 num mundo ainda não totalmente elétrico.
Outro aspecto é se a conveniência da integração dos serviços MaaS de porta-a-porta não vão agregar à falência do transporte público, que sendo de rota fixa e alta capacidade, tenderia a perder ainda mais as viagens curtas que subsidiam as principais rotas às periferias. Nesse aspecto, o MaaS obriga o transporte público a repensar, mais uma vez, sua forma de financiamento.
Saúde e bem estar
Quando os patinetes elétricos compartilhados chegaram no mercado foram uma febre e uma série de questionamentos sugiram, como: eles são seguros? As pessoas estão trocando carros ou caminhadas a pé por eles?
De fato, pesquisas indicaram que as pessoas trocaram caminhadas curtas a pé por viagens de patinete, o que contribui para a diminuição de atividades físicas já tão escassas numa sociedade super produtiva, além de aumentar a pegada de carbono de todos nós. Afinal, patinetes movimentam a cadeia de extração de minério, logística e combustíveis.
Estudo publicado pela revista Galileu mostra quase metade dos usuários de patinetes nos EUA teriam caminhado se o serviço não estivesse disponível. No Brasil esse modelo nem chegou a se fortalecer e diversas empresas encerraram suas atividades.
Com o MaaS aplicado de forma abrangente algo parecido pode acontecer. Viagens que antes seriam feitas a pé, ou com uma caminhada curta na primeira ou última milha, podem ser substituídas por viagens de porta a porta.
Como muitas pessoas não se exercitam ou fazem esportes, a mobilidade é um meio importante de saúde e bem-estar para grande parte da população. Um serviço MaaS pode tornar menos vantajoso a mobilidade ativa, sobretudo se não prever o compartilhamento dos modais ativos, por exemplo, incluindo aí viagens a pé.
MaaS e sistemas legados: o desafio da inclusão social
Não somos irrealistas ao afirmar que o MaaS pretende ser o regime dominante em nossas cidades, ou seja, não um sistema de mobilidade paralelo, mas sim o principal meio de acesso aos transportes. Pensando nisso, a discussão sobre a Mobilidade como Serviço que queremos é fundamental para sua construção, sobretudo num país desigual como o Brasil.
Um risco percebido é como o MaaS pode substituir o modelo de financiamento do transporte público falido hoje por um que seja sustentável, mas que não deixe de atender aos mais pobres.
Isso porque hoje as viagens mais longas de ônibus, por exemplo, até as periferias são pagas pelas viagens mais curtas, geralmente em regiões centrais da cidade. Esse modelo já está em xeque, pois muitas das viagens mais curtas estão sendo feitas por Uber e afins. Mas como o MaaS vai apresentar uma solução que não torne mais caras as viagens para a parcela mais pobre da população?
Outra forma de pensar seria no MaaS enquanto um sistema à parte, em que o transporte público também oferece o serviço regular como é feito hoje. Entretanto, o problema persiste: como evitar ainda mais o sucateamento dos serviços tradicionais enquanto as elites urbanas partem para uma versão 2.0 dos transportes?
Questões sobre a governança da mobilidade e políticas públicas
As principais ideias sobre mobilidade como serviço surgem no norte global. Experiências exitosas de encontram na Finlândia e no Reino Unido, realidades muito distantes das do sul global.
Para pensar o MaaS no Brasil temos que entender as características do povo brasileiro, sendo a desigualdade uma das mais marcantes.
No Brasil, os serviços de MaaS não vão progredir se estiverem atrelados à uma elite urbana, que facilmente já está trocando ônibus e metrô por caronas e carros compartilhados nas grandes cidades do país.
Por aqui, a inclusão social é peça chave e o transporte público é referência por meio do Bilhete Único e seus homônimos. Embora careça de integrações ainda mais atrativas, esses bilhetes possuem capilaridade em camadas da sociedade que ainda não vai ao smartphone quando precisa de mobilidade.
“Há um ‘problema de ação coletiva’ decorrente dos efeitos de uma rede de empresas privadas concorrentes e usuários individuais de MaaS fazendo escolhas que maximizam as prioridades pessoais ( Davis, 2018 ), e há uma probabilidade de que os serviços de transporte público existentes representem outro regime técnico que será tão afetado quanto a automobilidade pela MaaS”
– Kate Pangbourne et al. (2019)
Outro ponto sobre governança são os dados. Não podemos esquecer que no Brasil o transporte público é um direito social previsto na Constituição. Muitas cidades podem ficar tentadas a deixar que operadores privados de MaaS “cuidem de tudo”, mas a quantidade de dados que serão gerados com o uso generalizado do MaaS coloca a governança sobre os dados em pauta.
As informações de deslocamento da população são muito úteis para o planejamento da mobilidade, da infraestrutura e oferta de transportes, por exemplo, mas sua análise também serve para atores diferentes, como o varejo.
Nesse sentido, monopólios geográficos podem ser formar para impedir o acesso de novos provedores de mobilidade. Assim, com a falta de alternativa os serviços estabelecidos poderiam elevar constantemente seus preços, com a possibilidade da receita ser levada como lucro, não distribuída entre toda a cadeia impactada pelo MaaS, incluindo aí os passageiros.
O aspecto da geração de dados é fundamental, pois o poder público não pode ser visto apenas como responsável por desburocratizar o caminho para empresas privadas instalarem suas próprias plataformas MaaS.
É uma oportunidade para criar plataformas Open Source que valorizem toda a sociedade, além de pensar em novos modelos de negócio ao transporte público, que pode sim ser sustentável e a preços justos para a população.
A visão acima questiona a retórica mais comum atrelada ao MaaS, justamente para pensar numa Mobilidade como Serviço que atenda a todos e seja boa para nossas cidades. Todos os pontos podem receber estratégias para mitigação, mas precisamos nos aprofundar para aplicar as melhores ações.
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